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O Rio de dois séculos atrás

Mais de 20 anos após ter recebido, em doação, a Coleção Geyer, o Museu Imperial consegue enfim trazê-la a público

O Rio de dois séculos atrás
O Rio de dois séculos atrás
Olhar Germânico na Gênese do Brasil. Igreja Santa Luzia, de Eduardo Hildebrandt, e Floresta Brasileira, de Rugendas, são algumas das obras da exposição aberta em Petrópolis - Imagem: Coleção Geyer/Museu Imperial de Petrópolis/RJ
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Em abril de 1999, quando o casal Paulo e Maria Cecília Geyer tornou pública a doação de sua valiosa e rara coleção brasiliana para o Museu Imperial, de Petrópolis, a reação, nos meios culturais e na imprensa, foi de espanto.

“(A coleção) representa a maior doação, realizada no século XX, ao patrimônio histórico e artístico nacional”, escreveu, em 2006, a historiadora Maria Inez Turazzi, na revista do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo. “Essa decisão foi tomada pelos próprios colecionadores, ainda em vida, e não por descendentes ou terceiros.”

Além de doar 4.255 obras feitas por artistas, cientistas, exploradores e viajantes que no Brasil estiveram entre os séculos XVI e XIX – com predominância no século XIX –, o casal cedeu à instituição a própria residência, no Cosme Velho. Nascido no Rio de Janeiro, em 1921, Paulo Fontainha Geyer foi um notável empresário do setor petroquímico. Criara, em 1947, a Refinaria União, e, em 1969, formou a Unipar (União de Indústrias Petroquímicas S.A.).

A casa, que tinha obras penduradas até no teto, foi cedida com usufruto para o casal. Geyer morreu em 2004, aos 83 anos. Maria Cecília, em 2014, aos 92. Desde então, o Museu Imperial tenta transformar a residência em museu. Mas, para isso, é preciso, por exemplo, criar rampas e estruturas de acessibilidade, e ampliar o número de banheiros.

“Estamos lutando para viabilizar o projeto. Mas não vou te falar em data, porque sei que não vou cumprir”, diz, escaldado, Maurício Vicente Ferreira Júnior, diretor da instituição criada na década de 1940. “Mas é um grande alívio ter conseguido começar a mostrar parte da coleção para o público.”

Tem, portanto, gosto de missão começando a ser cumprida a exposição O Olhar Germânico na Gênese do Brasil, que foi aberta no sábado 21, na sede do Museu Imperial, e segue em cartaz até agosto. É a primeira vez que o museu a exibe. Viabilizada com o patrocínio da empresa da família, a Unipar, a mostra reúne cerca de 500 obras do acervo. “Estamos dando uma satisfação ao público”, reitera Júnior.

A Coleção Geyer dá o ar de sua grandeza com um recorte específico: as obras selecionadas pela curadoria foram todas produzidas por artistas de países de língua alemã. Dentre eles, há desde os viajantes com breves passagens pelo País até alguns que por aqui fixaram residência. “Como, naquele período, não existia a Alemanha e a Áustria passou por alterações, tomamos cuidado com o uso da expressão germânicos”, diz o diretor.

Enquanto os franceses eram abolicionistas, os alemães tinham um olhar distanciado

A partir desse recorde, foram definidos critérios de importância estética – com as pinturas a óleo saindo em vantagem – e temática. No caso do tema, os curadores privilegiaram obras que distinguem essa coleção de outras já apresentadas.

“Uma marca dessa coleção é o olhar para pessoas anônimas e para os costumes da vida diária no Brasil”, diz ­Rafael Cardoso, que assina a curadoria com Júnior. “As obras são qualitativamente muito diferentes daquelas produzidas pelos ingleses e pelos franceses.”

Tomando o cuidado de, como bom historiador da arte que é, não fazer “generalizações culturais”, Cardoso conta que uma das especificidades do olhar germânico está no trato da escravidão.

“Os franceses tinham um olhar abolicionista. Os alemães são mais distanciados ou, pelo menos, não tão engajados”, define. “Debret mostrou escravos sendo castigados e enfatizou a relação entre senhores e escravos. O barão de ­Löwenstern, por exemplo, mostra as cenas de escravidão, mas de forma mais neutra.”

Os germânicos eram, por outro lado, mais românticos em relação às paisagens. As silhuetas da Baía de Guanabara e do Pão de Açúcar ao luar são, claramente, devedoras do romantismo alemão. Mas, obviamente, como faz questão de assinalar Cardoso, nem todo alemão era romântico.

Alguns dos artistas trazem, como marca principal, o olhar científico, responsável pela forte presença da botânica nas diferentes brasilianas. Alguns deles integraram uma das primeiras expedições vindas da Baviera. “Os alemães eram conhecidos como os inspiradores da ciência no Brasil do século XIX”, explica Cardoso.

Pesquisador associado da Universidade Livre de Berlim e há dez anos radicado na Alemanha, Cardoso é especialista no século XIX e na primeira metade do século XX. E, segundo ele, a historiografia desse período é muito centrada na França.

“Isso aconteceu também porque, no pós-Primeira Guerra Mundial e, principalmente, no pós-Segunda Guerra, a Alemanha, pelos motivos certos, ficou em baixa. O sentimento antialemão era forte”, diz. “Mas o Brasil tem uma das maiores colônias alemãs do mundo e a exposição ajuda a recalibrar a história dessa troca. É sempre importante voltar às fontes primárias.”

Cardoso e Júnior, imbuídos do espírito do tempo, também buscaram enfatizar, na mostra, a presença dos anônimos e dos escravizados. “A revisão historiográfica significa isso: olhar para o que não era visto antes”, diz Cardoso. “Hoje, queremos contar uma história na qual a vida cotidiana esteja mais projetada.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Rio de dois séculos atrás”

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