

Opinião
Devaneios liberais
A turma das expectativas racionais entregou a chamada ciência econômica ao pensamento mítico


“O comércio estabeleceu a marca do egoísmo, o sinal de seu todo poder escravizador, depois que se submeteu a um minério brilhante. Chamou-o de ouro, ante cuja imagem se curva a grande vulgaridade do vaidosamente rico, do miserável orgulhoso; a multidão de camponeses, nobres, sacerdotes e reis, com sentimentos ofuscantes reverenciam o poder que os reduz à poeira da miséria. Mas no templo de seus corações comprometidos Gold é um deus vivo…”
Para ilustrar essa instigante provocação do poema Queen Mab, de Percy Shelley, invoco um editorial recente lambuzado nas páginas Folha de S.Paulo. Intitulado ‘Lula pela Sexta Vez’, o escrevinhador-editorialista dispara: “Os bolores de ideias obsoletas, no entanto, não foram totalmente varridos do repertório do chefe petista. Eles se acumulam nas propostas para a economia e na confusão de desenvolvimento econômico com intervencionismo estatal… Lula insiste em defender o fortalecimento de estatais em mercados como os de energia e o financeiro (…) Advogar o fortalecimento do intervencionismo econômico, no Brasil concreto, é cevar lobbies bem posicionados que parasitam o Erário. Lula não entendeu, e isso preocupa, que o avanço da agenda social inclusiva que corretamente defende depende de fazer-se o inverso – afastar os caçadores de renda da esfera das decisões estatais”.
Entre ambiguidades e trepidações da mídia está sempre presente “o poder escravizador do minério brilhante, o ouro, ante cuja imagem se curva a grande vulgaridade do vaidosamente rico, do miserável orgulhoso”, como ensinou o poema de Shelley. (O poder escravizador livrou-se do ouro e correu para se abrigar nas modernas traquitanas eletrônicas do PagSeguro.) O poema foi escrito nos primórdios do século XIX sob os eflúvios do Iluminismo e da Revolução Francesa. Eflúvios que encantaram e mobilizaram o jovem poeta. Seu entusiasmo iluminista e revolucionário extravasou para a imprensa Cartista, empenhada em defender os deserdados da Revolução Industrial em curso.
Nesse momento, o jornal Northern Star fazia campanha pela reforma política e publicou uma longa reportagem a descrever a acusação e posterior prisão de Edward Moxon, por publicar o poema Queen Mab. Moxon sofreu as penas da “lei da blasfêmia”, um jabuti do Ancien Regime pendurado na árvore frondejante do liberalismo inglês.
Os jabutis pendurados nas cavernas liberais resmungam que a sociedade é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a Sexta-Feira. Essa operação ideológica permite conceber as relações entre Estado e mercado como instâncias antitéticas da vida social.
Jean-Jacques, o Rousseau, escreveu no Discurso sobre a Economia Política: “O corpo político, tomado individualmente, pode ser considerado como um corpo organizado, vivo, assemelhando-se ao do homem. O poder soberano representa a cabeça; as leis e os costumes são o cérebro, a fonte dos nervos e sede do entendimento, vontade e sentidos, dos quais os juízes e magistrados são os órgãos: comércio, indústria e agricultura são a boca e o estômago que preparam a comum subsistência; a renda pública é o sangue, que uma economia prudente, na execução das funções do coração, faz com que se distribuam através de todo o corpo nutrição e vida…
A coleção de crenças está apoiada em esquemas conceituais grotescos
Na visão da Folha, cabeça, tronco e membros estão desarticulados. Estado e mercado deixam de ser instâncias da constituição da sociedade dos indivíduos enquanto sistema histórico de relações sociais, políticas, econômicas, e passam a representar alternativas contrapostas de organização da sociedade. Na contramão de Rousseau, a visão do liberalismo das cavernas pressupõe um Estado “intervencionista”, uma cabeça intrusa em seu próprio organismo. Desde o início dos anos 1980 – sob a liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e revigorado pela Teoria das Expectativas Racionais –, o pensamento cavernoso desatou uma desaçaimada ofensiva global – ideológica e política – contra as práticas do Estado regulador e os direitos criados pelo Estado do Bem-Estar.
Munidos de seus tacapes e escorados na hipótese das expectativas racionais, os cavernosos expediram uma sentença condenatória ainda mais dura contra a intervenção do Estado, ao proclamar a ineficácia das políticas fiscal e monetária em sua vã pretensão, assim diziam, de limitar a instabilidade cíclica e promover o crescimento da economia. Os governos logo haveriam de aprender: os agentes racionais que povoam os mercados sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível, são capazes de antecipar sua evolução provável. Não se deixam enganar, nem por um momento, pelo velho truque de estimular a atividade econômica com os anabolizantes nominais da política monetária leniente. Caso insistam nessa prática, políticos e burocratas voluntaristas, em vez de mais empregos, conseguirão apenas mais inflação, salvo na hipótese improvável de que possam surpreender e tapear permanentemente os sagazes agentes privados, implacavelmente racionais.
Essa coleção de crenças está apoiada em esquemas conceituais grotescos. A turma das expectativas racionais entregou a chamada ciência econômica às forças do pensamento mítico, em nome da despolitização e da “limpeza ideológica”. A consequência dessa empreitada não foi apenas o irrealismo descuidado, mas as sucessivas e persistentes escaramuças para esconder o funcionamento concreto das economias capitalistas, um organismo em permanente transformação ao longo da história, na efetivação de suas leis de movimento. Sob o pretexto de enfrentar o corporativismo e a resistência dos “direitos adquiridos”, os trogloditas da liberdade econômica propõem o retorno aos padrões primitivos nas relações entre as forças do capital e as debilidades do trabalho. Advogam o encolhimento do sistema de proteção social criado para impedir a desgraça dos mais fracos, o sofrimento do homem comum atormentado pelas ameaças da precarização e do desamparo na saúde e na doença.
Esses são os princípios que conduzem as “reformas”, tanto aquelas nos países desenvolvidos quanto as mimetizadas por governantes de países periféricos. Julgam, com esses programas, comprar o ingresso para o clube dos ricos. Estão, na verdade, trocando a saúde, a educação do povo e o sossego dos velhos por miragens. O rádio, a televisão e os jornais empenham-se em convencer os cidadãos da necessidade de se sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais, abdicar dos direitos ou encarar a destruição da economia. Morra nos hospitais sem médicos nem remédios. Em nome da “ciência” econômica, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Devaneios liberais”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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