Editorial
A guerra sem santos e heróis
Todo conflito bélico é sempre injusto, proclama o papa Francisco, e os contendores têm culpa no cartório


Disputas de poder entre dois contendores amiúde desandam em conflito aberto. No caso da guerra declarada por Vladimir Putin, rechaçada pelos ucranianos e por várias medidas tomadas para alargar a Otan, passa a configurar um ato de violência exemplar a seu modo. Razão tem o papa Francisco: toda guerra é injusta. O que também significa que as responsabilidades pela injustiça devem ser repartidas pelos envolvidos. Na situação atual, ofenderia a própria razão acreditar que Putin é o Mal e Biden, o Bem.
O presidente dos Estados Unidos é um hipócrita. Às costas dele desenrola-se uma história sem par de prepotência e violência. A Doutrina Monroe é de 1823 e assim se chama porque foi anunciada pelo presidente americano James Monroe, já vencida a guerra de independência e, recentíssima, a Presidência de Thomas Jefferson, considerado o principal entre os pais da democracia estadunidense. Diga-se que ele dormia com as suas escravas, donde a hipocrisia não é apenas do atual presidente.
Como sabemos, a Doutrina Monroe assim pode ser resumida: o continente americano é dos Estados Unidos e países europeus não podem tentar se estabelecer por estas bandas. A América é dos americanos, e nós somos os americanos. A doutrina não funcionou, furada por franceses, portugueses e espanhóis. Além disso, tratava-se de exterminar os povos autóctones e de trazer escravos para cuidar do trabalho pesado. As formas de racismo foram as mais cruéis, mas não faltam até hoje manifestações atrozes em vários estados da federação. Há quem abrace um fuzil e atire indiscriminadamente para eliminar cidadãos pretos e até brancos, o maior número possível.
Este ainda alimenta projetos imperialistas – Imagem: Kirill Kudryavtsev/AFP
O presidente Abraham Lincoln cuidou de garantir a cidadania a todos os habitantes, sem exceções, ao deflagrar a chamada Guerra de Secessão em nome de uma democracia autêntica. Talvez pareça óbvio que ao cabo tenha sido assassinado, mas de todo modo houve leis que determinaram a igualdade. De fato, elas sempre foram desrespeitadas e a igualdade, traída. Nos dias de hoje, episódios de racismo continuam a ocorrer e amiúde culminam com a morte de inocentes. Enquanto isso, a Doutrina Monroe permaneceu em pleno vigor e os Estados Unidos, inspirados por ela, quase conseguiram estabelecer o seu domínio sobre todo o continente, com exceção do Canadá, em parte colonizado por franceses.
A história está coalhada de uma série de expedições bélicas punitivas na América Latina, contra países que tentaram se livrar dos grilhões a prendê-los à vontade de Washington, em nada diferentes às invasões dos tanques soviéticos nos países de além-cortina de ferro. A obsessão anticomunista, frequentemente paranoica, orientou a política americana e neste contexto surge a figura do senador republicano Joseph McCarthy, altamente simbólica, e a fobia engata na Guerra do Vietnã, depois da derrota francesa, em 1954, em Dien Bien Phu. Os EUA atribuíram-se a missão de substituir a França contra a população vietnamita e a guerra acabou envolvendo toda a região, incluindo o Camboja e o Laos. No início do conflito, o general Westmoreland prometia devolver à Idade da Pedra os vietnamitas liderados por Ho Chi Minh.
O exército americano fez tudo que pôde para satisfazer o general, mas também eles foram em frente até a derrota. O fracasso dos Estados Unidos nesta guerra calou fundo no próprio país e o período foi interessante em razão dos mais diversos protestos e da inquietação juvenil que se espalhou em vários estados da federação. Mas a dura lição, depois de alguns anos, arrefeceu e Tio Sam transformou em verdadeira colônia – dizia-se quintal na época – a América Latina. Aqui, o embaixador Lincoln Gordon chegou a conspirar com os moradores da casa-grande e com os militares convocados para executar o trabalho sujo, a elevar a sua ameaça até a convocação da frota atlântica de Washington para as costas brasileiras.
O cemitério ucraniano e a célebre foto simbólica das atrocidades americanas no Vietnã – Imagem: Nick UT/AP Images e Christopher Furlong/Getty Images/AFP
Quando Juracy Magalhães foi embaixador em Washington, nomeado pelos militares que derrubaram João Goulart, impavidamente declarou: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. A CIA invadiu a América Latina e no Chile, por exemplo, eméritos torturadores brasileiros trabalharam com afinco no Estádio Nacional do Chile, em Santiago, para garantir a competência na maior repressão, a levar ao assassínio de Salvador Allende, presidente constitucionalmente eleito, e a desembocar na ditadura de Augusto Pinochet.
No filme Missing (O Desaparecido), de Costa-Gavras, sobre o golpe chileno, com Jack Lemmon e Sissy Spacek, os torturadores no estádio eram declaradamente brasileiros. Foi o tempo de Dan Mitrione, o agente da CIA que se movia em todas as direções no Cone Sul. O próprio John Kennedy, entre outras façanhas capaz de conquistar Marilyn Monroe e, eventualmente, dividi-la com o irmão Robert, e outras beldades hollywoodianas, tentou a invasão de Cuba, em abril de 1961, pela Baía dos Porcos.
Em matéria de atrocidades, os Estados Unidos têm na consciência Abu Ghraib e Guantánamo, sem contar a Guerra do Iraque, que levou à execução de Saddam Hussein, e as duas guerras do Golfo, deflagradas por George Bush pai. Vale lembrar também as interferências de Tio Sam nos conflitos entre árabes e israelenses, intervenções na guerra civil do Líbano, na revolução fundamentalista no Irã, na Guerra do Afeganistão e na Guerra da Síria.
Como se vê, é uma longa série de intervenções bélicas, nas quais Tio Sam não sorri. Quem sorri hoje é Joe Biden, convencido, ao que tudo indica, da capacidade dos EUA em representar o Bem. Não nos deixemos enganar, muito Mal os Estados Unidos já encarnaram. Quanto à Rússia, que já foi soviética desde 1917, de início contou com um grande líder, Lenin, mas logo dobrou-se diante da tirania de Stalin. Com a pronta colaboração de Lavrenti Beria, o tirano cuidou de eliminar, um a um, os seus rivais. Até Trotski, o intelectual dissidente, não escapou: alcançado por emissários soviéticos foi assassinado, em agosto de 1940, na Cidade do México, onde se refugiara. Houvesse uma ideologia a justificar tanta violência, seu governo poderia ser tranquilamente comparado ao de Mussolini e Hitler.
Monroe: a América é nossa – Imagem: National Gallery Smithsonian
Nikita Kruchev foi iniciador de um processo que termina com Mikhail Gorbachev, a queda do Muro de Berlim e a democratização da Rússia nas mãos de um novo “czar”, o ex-agente da KGB Vladimir Putin. Neste embate, não há santos e colocar uma auréola acima da cabeça de Biden é simplesmente ridículo e desnecessário.
Este texto não pretende convencer quem quer que seja, e sim estimular, em relação à cena atual, o espírito crítico, de sorte a evitar enganos. A sacrossanta verdade diz, inexoravelmente, que a mesma prepotência sem limites e a indiferença diante das populações inocentes atingidas e das vítimas tombadas caracterizaram as ações de um lado e do outro. O imperialismo nas suas duas formas conduziu a crimes sem conta.
Neste palco largamente ensanguentado, exibe-se o que há de pior na história mundial do século passado, cujos efeitos se perpetuam no presente. Não nos deixemos seduzir pelo sorriso melífluo de Joe Biden, tampouco pela expansão da Otan e pelo fornecimento de armas ao exército ucraniano. São gestos que agudizam o conflito e atiçam a reação russa. Desta maneira, a guerra continua sem a esperança de que possa terminar tão cedo, tanto mais porque a mediação ensaiada pela China se esvaiu.
Como de hábito, não há como confiar nos próprios homens. Orientam-se todos ao sabor de ódios sempre despertos, de vaidades nunca sopitadas, de rancores que afundam raízes no tempo. Neste caldo naufraga qualquer possibilidade de entendimento. A guerra injusta aceita, infelizmente, as injunções da natureza humana. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A guerra sem santos e heróis”
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