Cultura
O cinema como sintoma social
O longa-metragem A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga, ecoa os insucessos da história recente do país


Uma piscina vazia, um buraco no meio do terreno e a frustração de uma mulher de classe média são sinais que a diretora Thais Fujinaga superpõe em seu primeiro longa-metragem para abordar o sentimento difuso de incapacidade e fracasso.
Embora o título A Felicidade das Coisas sugira uma direção poética, os ângulos que a diretora e roteirista prioriza não servem para quem busca na ficção um jeito de escapar dos tempos difíceis em que nos metemos.
As imagens de movimento suave das ondas e a luminosidade calorosa da beira-mar usadas como convite sensorial no início da história logo perdem o encanto no contraste com o aspecto comum das personagens e dos cenários.
Paula, sua mãe e os dois filhos são como essa gente que vemos no espelho e no cotidiano. Não são modelos desfilando em paisagens paradisíacas a nos dizer “fuja”.
O pequeno núcleo familiar é o limite deste drama ambientado numa casa modesta numa região sem glamour do litoral paulista. São escolhas que refletem a simplicidade do projeto de Fujinaga, raro exemplar de filme brasileiro concluído no período em que o bolsonarismo já havia implantado a política de terra arrasada contra a cultura.
A trama afirma o tempo todo seu interesse pela miudeza. Paula quer ter uma piscina na casa. Os operários cavaram o buraco, a piscina foi comprada, mas o custo ultrapassa o pouco que ela tinha poupado.
Ao lado de Paula e seu sonho vazio, sua mãe, Antônia, oferece outra representação da imagem feminina, com um corpo que se queixa das dores da idade.
Em contraste com Antônia, relativamente liberta das funções maternas, Paula carrega o peso da gravidez, arrasta um relacionamento frustrante e tem de manter na linha os filhos – a pequena Gabriela e o pré-adolescente Gustavo.
O filme, no entanto, não se limita a reiterar o que todos sabem acerca da condição feminina ou da maternidade.
Como os melhores projetos da geração de cineastas brasileiros que emergiu desde os anos 2000, A Felicidade das Coisas ecoa os insucessos da história recente do País. É um filme-sintoma.
Em vez de espelhar de modo direto e óbvio a realidade esfacelada, os filmes dessa geração refletem os sentimentos, indicam o que está aquém da representação, o que é percebido sem ser compreendido.
São filmes em que os personagens não chegam a reagir, apenas ficam paralisados. Em que todos sabem que estão à beira do precipício, só não querem ser os primeiros a cair. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O cinema como sintoma social”
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