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A luta continua
Feministas históricas unem-se à cruzada para evitar o retrocesso na lei de aborto nos Estados Unidos


Foi durante o feriado de Ação de Graças, ao reencontrar velhos amigos do colégio, que Frances Beal soube que Cordelia tinha morrido. Assim como a feminista e ativista negra, hoje com 82 anos, sua amiga tinha saído de casa para fazer a faculdade, mas não conseguiu passar pelo primeiro ano porque, como qualquer mulher que quisesse interromper uma gravidez nos Estados Unidos em 1958, foi obrigada a fazer um aborto clandestino. “Ela estava morta porque fez um aborto ilegal. E deu errado. E se você olhar as estatísticas, o número de mulheres que morreram por abortos ilegais foi enorme”, disse Frances, mais tarde integrante do movimento pela legalização do aborto.
Hoje, mais de 60 anos após a morte de Cordelia e quase meio século desde que a lei Roe vs. Wade legalizou o aborto, ela teme que muito mais mulheres possam morrer, pois um documento vazado revelou que a Suprema Corte parece se preparar para anular a decisão histórica. “A derrubada de Roe vs. Wade equivale ao assassinato de mulheres, e sinto em meu coração que isso acontecerá novamente”, disse a autora do panfleto pioneiro de 1969 Double Jeopardy: To Be Black and Female (Risco Duplo: Ser Negra e Mulher).
O que aconteceu nos últimos dias deve enviar um sinal de alerta urgente não apenas para os norte-americanos, mas também para o mundo, disse a ativista, antes de pedir aos cidadãos que saiam às ruas aos milhões em todo o mundo, como fizeram após o assassinato de George Floyd pela polícia. “Infelizmente, os Estados Unidos muitas vezes atuam como precursores de coisas que acontecem em outros países. E se eles podem atacar e destruir o direito de uma mulher optar pelo aborto nos Estados Unidos, não vai demorar muito para que o direito seja destruído em outros países.”
As mulheres de todo o mundo, diz Beal, precisam voltar à atitude daquelas dos anos 1960, para proteger a vida de milhares que estariam ameaçadas. “É um direito humano básico de uma mulher controlar seu próprio corpo”, disse. A morte de sua amiga permitiu que a futura ativista imediatamente adotasse uma posição forte sobre a questão do acesso ao aborto, e ela contou sua história em reuniões de massa em Nova York.
Enfrentar a mesma luta novamente é deprimente e irritante, mas ela espera que seja uma oportunidade para as mulheres se organizarem e se unirem, como fizeram nas décadas de 1960 e 1970. “A questão do acesso ao aborto, mesmo legal, era um pouco limitada por causa das diferenças de classe e raça. Não esquecemos isso”, afirma. “Mas podemos deixar de lado essas diferenças de classe e raça, bem como as diferenças de geração, nos unirmos e dizer: ‘Não, não vamos aceitar isso. Não aceitamos na década de 1970 e não vamos aceitar hoje’.”
Merle Hoffman, 76 anos: “É estranho, é kafkiano. De certa forma, estou revivendo minha juventude”
Merle Hoffman, 76 anos, está na linha de frente do movimento há mais de 50 anos, desde que desistiu de seu plano de ser uma pianista clássica. Ela fundou o Choices Women’s Medical Center em Queens, Nova York, uma das primeiras clínicas de aborto dos Estados Unidos. Em 1989, Hoffman declarou “estado de emergência” nos direitos das mulheres em frente à Catedral de St. Patrick com um enorme cabide. Hoje ela continua a usar o cabide em protestos e discursos, e o mantém em seu escritório.
Embora o desenvolvimento mais recente seja “um tremendo desastre” e “uma retirada flagrante de um direito humano, civil e constitucional fundamental”, Hoffman disse que fazia tempo que isso se aproximava. “Eles têm sido persistentes, consistentes, e esse tem sido seu objetivo, e com os três novos juízes conservadores no tribunal eles conseguiram ficar numa posição em que realmente podem fazer isso.”
Hoffman, que recentemente apoiou a fundação de uma nova organização, a Rise Up 4 Abortion Rights, classifica o episódio como uma “luta de gerações” cujo fim ela não vê chegar tão cedo. “É estranho, é kafkiano. De certa forma, estou revivendo minha juventude.” Depois de Roe vs. Wade, sugere, muitos “metaforicamente colocaram seus pés políticos em cima da mesa e disseram ‘nós temos tudo coberto’”. E acrescentou: “Bem, você nunca cobre isso. Temos de lutar contra questões pelos direitos civis novamente, direitos de voto, todo tipo de coisa, nunca está coberto porque sempre há oposição. É uma força dinâmica”.
Nori Rost, ministra e líder do clero da Sociedade de Cultura Ética de Nova York, ainda estava no ensino médio no Kansas quando participou de seu primeiro evento pró-opção em 1978. “Foi cinco anos depois de Roe vs. Wade, então foi uma estranha mistura de júbilo e ainda talvez estresse sobre onde estávamos, porque ainda era tão cru e recente na memória”, disse Rost, hoje com 59 anos. “É chocante pensar que estamos de volta onde estávamos em 1972. Cinquenta anos depois, aqui estamos no mesmo pânico, na mesma incerteza sobre o que vai acontecer com aquelas que precisam ter acesso seguro ao aborto legal.” Ela também teme que o desmoronamento dos direitos ao aborto possa levar à reversão da igualdade no casamento. “É um sentimento de grande impotência que cinco juízes possam ter o direito de escolher como milhões de mulheres neste país podem acessar a atenção à saúde para gerenciar seus próprios corpos. É muito desmoralizante.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A luta continua”
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