Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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A defesa da violência

O Ministério da Saúde, no governo Bolsonaro, apregoa a cesariana indiscriminada e assume o papel de incentivador de práticas inaceitáveis relacionadas ao parto

A defesa da violência
A defesa da violência
Imagem: iStock
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Fruto de ampla discussão envolvendo os gestores das três esferas de governo, o Conselho Nacional de Saúde, especialistas e movimentos de mulheres, a Rede Cegonha foi criada em 2011.

Ainda que o nome tenha sido objeto de críticas, tratou-se de uma potente estratégia de qualificação da atenção obstétrica e infantil, alicerçada em evidências científicas, nos termos de um documento da Organização Mundial da Saúde (OMS) – Boas Práticas de ­Atenção ao Parto e ao ­Nascimento (1996) – e nas melhores experiências de serviços públicos e privados brasileiros.

A Rede Cegonha buscou assegurar às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e atenção humanizada à gravidez, parto, abortamento e puerpério. Às crianças, visou garantir o direito ao nascimento seguro, crescimento e desenvolvimento saudáveis. O principal objetivo era reduzir a mortalidade materna e neonatal, bem como a epidemia de cesarianas e a violência obstétrica, grandes desafios para o País.

Estimulou-se a garantia do acolhimento com classificação de risco, ampliação do acesso e melhora da qualidade do pré-natal, vinculação da gestante à unidade de referência e ao transporte seguro, adoção de boas práticas e segurança na atenção ao parto e nascimento, a atenção à saúde das crianças de zero a 24 meses, além da ampliação do acesso ao planejamento reprodutivo.

A Rede Cegonha foi implementada, inicialmente, nas regiões metropolitanas e na Amazônia Legal e Nordeste. No início de 2016, 5.488 municípios tinham aderido ao programa, cuidando de mais de 2,5 milhões de gestantes a partir de diretrizes que buscavam valorizar o parto normal e garantir que as cesarianas fossem indicadas com observância de critérios médicos. Foram conveniadas 56 Casas da Gestante e Bebê, 100 Centros de Parto Normal e 9.980 leitos em funcionamento, inclusive com a criação de 15 novas maternidades.

A Rede Cegonha tinha como princípios o respeito, a proteção e a realização dos direitos humanos, o respeito à diversidade cultural, étnica e racial, a promoção da equidade, o enfoque de gênero, a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, a participação e a mobilização social, e a compatibilização com as atividades que já vinham sendo desenvolvidas nos estados e municípios.

Ainda que com muitas dificuldades e desafios, a Rede Cegonha pautou questões essenciais para a Saúde Pública até o golpe de 2016, quando passou a ser desinvestida, tal e qual outras políticas públicas.

As mudanças anunciadas recentemente na Rede Cegonha pelo Secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Rafael Câmara, médico obstetra da Polícia Militar e membro do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, inscrevem-se no modo “motosserra” que vem caracterizando a destruição de políticas, programas e ações que buscam garantir os princípios constitucionais de direito à saúde.

Ao lançar a nova Caderneta da Gestante, documento de grande relevância por apresentar um conjunto de direitos das gestantes e puérperas, estímulo aos hábitos saudáveis e o registro dos principais marcos relativos ao acompanhamento pré, peri e pós-natal e puerperal, tratou de desqualificar a existência da violência obstétrica no Brasil e defendeu, indistintamente, a cesariana e a realização de práticas sem lastro científico e desaconselhadas pela OMS e pelas Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal.

O Ministério da Saúde, no governo Bolsonaro, assume assim o papel de incentivador da violência obstétrica. Apresenta a cesariana como um método de escolha da gestante e não por indicação médica, desconsiderando os riscos existentes. Naturaliza a episiotomia e a manobra de Kristeller (pressão mecânica exercida pelo médico contra a barriga da gestante). Desqualifica e desconsidera o papel da enfermagem na assistência obstétrica, contra todas as evidências existentes no Brasil e no exterior.

A violência obstétrica ainda é um problema frequente no mundo. O risco de sofrê-la é maior em mulheres mais novas e com baixo nível de escolaridade. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz, a taxa de violência obstétrica reportada por mulheres é de 45% no SUS e de 30% no sistema privado, sendo mais grave em negras. As mulheres brasileiras estão agora ainda mais vulneráveis às práticas mutiladoras e traumatizantes, que, inclusive, podem ocasionar sua morte e a do bebê.

Resultado da associação entre negacionismo, reacionarismo, corporativismo e interesses mercantis. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A defesa da violência”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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