Cultura

assine e leia

Os horrores de um continente

Em seu romance de estreia, a colombiana Vanessa Londoño combina poesia e violência para falar sobre a realidade latino-americana

Os horrores de um continente
Os horrores de um continente
A autora localiza a narrativa no vilarejo de Hukuméiji, próximo ao mar do Caribe - Imagem: David Amado Pintor/GOTM
Apoie Siga-nos no

As menos de cem páginas de ­Cerco Animal podem, em um primeiro momento, não dar a dimensão precisa do soco que é o livro. É que a linguagem poética da prosa de Vanessa ­Londoño, autora nascida em Bogotá, escamoteia, ao olhar inicial, a profundidade de uma história de dor e atrocidades.

As impressões iniciais dissipam-se conforme a trama avança. Corpos mutilados, episódios de violência gerados pelo patriarcado e a busca de uma maneira de narrar que dê conta disso tudo se combinam e, ora, se digladiam. Como contar com precisão os horrores físicos, emocionais e espirituais que as personagens enfrentam?

“Era claro que minha mãe estava me negociando, como havia feito com os móveis que haviam desocupado a casa”, escreve uma narradora. “Sua mãe deu à luz uma criança que ela afogou com a minha ajuda na piscina da casa. Haviam me impressionado seus órgãos saudáveis e modestos e o rubor avermelhado de suas bochechas, que foram se apagando no lento movimento de sua cabeça submersa na água”, diz outro.

Ou ainda: “Mamãe era Fernanda Huanci. A indígena que amarraram a um totumo por dias seguidos e que colocaram para carregar pedras ajoelhada sobre sementes de algodão”.

Essa linguagem dura e de evocação visual marca Cerco Animal. O livro entrelaça quatro narrativas em primeira pessoa, que se complementam e se contradizem. Trata-se, nesse sentido, de um livro labiríntico, que tira o centro de quem o lê e cria propositadas confusões.

CERCO ANIMAL.Vanessa Londoño. Tradução: René Duarte. (Editora Peabiru, 98 págs. 44 reais)

O cenário é o vilarejo de Hukuméiji, no norte da Colômbia, próximo ao mar do Caribe, um lugar úmido e, ao mesmo tempo, seco, que começa num rio e termina nas montanhas. Essa contradição, quase uma impossibilidade de existência, é também o que marca a trama e as diversas vozes do livro – tantas que, por vezes, fazem o leitor se perder.

Ler Cerco Animal é, também, um exercício de memória, como definiu a autora em entrevista ao El País. Ela diz que, para não nos esquecermos dos horrores que sempre afligiram a América Latina, é preciso sempre lembrar.

Ao mesmo tempo que escancara a violência encrustada na história latino-americana, a autora evoca, por meio de descrições precisas, a força da natureza em seu país. A marcante estreia de ­Londoño é o primeiro lançamento de mais uma pequena editora que surge no Brasil, a Peabiru, que nasce com o propósito de se especializar em literatura latino-americana. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os horrores de um continente”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo