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Estranhamente autêntico

Depois de dois filmes baratos e cults, Robert Eggers recebe um cheque gordo de Hollywood para fazer um conto de vingança viking

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O Homem do Norte, terceiro longa-metragem do cineasta de 38 anos, tem sangue, músculos e um elenco brilhante liderado por Alexander Skarsgård - Imagem: Larry Busacca/AFP e Universal/Focus
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Em seu primeiro filme, A Bruxa­ (2105), que custou 4 milhões de dólares e foi sensação no Festival Sundance, Robert Eggers mostrou a batalha humana entre o puritanismo e o ocultismo na Nova Inglaterra no século XVII. Ele seguiu com O Farol (2019), um pesadelo de sobrevivência surrealista, embebido em maresia, masculinidade tóxica, piadas de peido e socos em polvo. É o tipo de produção que se encaixa à perfeição nos cultos autorais, mas que, geralmente, não inspira os estúdios de Hollywood a dar ao diretor um cheque gordo para criar um sucesso de bilheteria.

O Homem do Norte, o enorme, amalucado e emocionante terceiro longa-metragem de Eggers, em cartaz nos cinemas do Brasil a partir da quinta-feira 12, foi feito pelo preço de várias Bruxas e Faróis. Trata-se de um brutal conto de vingança viking, enraizado na lenda escandinava de Amleth, no qual Eggers aumenta significativamente sua aposta na ação – algo anteriormente presente apenas na luta homoerótica entre os dois faroleiros enlouquecidos vividos por Robert Pattinson e Willem Dafoe.

Encabeçado pelo gigantesco Alexander Skarsgård como um príncipe islandês decidido a vingar o assassinato do pai e recuperar seu reino, o filme tem sangue, músculos e um elenco brilhante que inclui Nicole Kidman, Ethan Hawke e Anya Taylor-Joy. Há até uma participação especial da divindade pop islandesa Björk. Ainda assim, o tom histórico, a espiritualidade desenfreada e o heroísmo ambíguo se parecem muito mais com a estranha e original sensibilidade do cineasta de 38 anos do que o orçamento de blockbuster, de 70 milhões de dólares, poderia sugerir.

“Vamos torcer para que arrase alguns quarteirões”, diz ele rindo, meio nervoso, mexendo-se levemente num sofá do Soho Hotel, em Londres. Nos encontramos um pouco depois do café da manhã. O sol brilha e ele está ansioso para um domingo na cidade com sua mulher, ­Alexandra Shaker, psicóloga clínica, e seu filho, Houston. O luxuoso hotel não parece seu ambiente natural.

“Estou orgulhoso do filme, mas nem tudo é exatamente como eu esperava que fosse”, diz o diretor

Os dois primeiros filmes do cineasta foram baratos e estiveram totalmente sob seu comando criativo (o produtor de ­O Farol­ foi o brasileiro Rodrigo Teixeira). Afastar-se do cinema independente não significou apenas lidar com cenários, elenco e desafios técnicos maiores, mas dar ao estúdio o controle sobre o corte final.

Mas parece que, em grande medida, o estúdio cedeu às idiossincrasias de ­Eggers, permitindo que ele trabalhasse com seus chefes de departamento habituais, incluindo o diretor de fotografia Jarin Blaschke. A preferência de Eggers e Blaschke por tomadas longas e planejadas, evitando as segundas unidades, resulta em uma estética texturizada e uma perspectiva imersiva raramente vistas nos filmes de ação.

O Homem do Norte prende o público de maneira diferente da maioria dos filmes baseados na jornada do herói. Sua bússola moral está sempre girando e o valor da missão vingativa do príncipe Amleth é constantemente questionado. É o mesmo mito antigo que perpassa o igualmente conflituoso Hamlet, de Shakespeare. ­Eggers, filho de um professor de ­Shakespeare, foi mais atraído por essa complexidade psicológica do que pela pompa guerreira.

Eggers cresceu na pequena cidade de Lee, em New Hampshire (EUA), e não foi uma criança típica. Sua mãe era atriz e seu pai, o reitor da universidade local. Um amor juvenil por histórias em quadrinhos deu lugar a interesses mais esotéricos, quando um amigo da família o apresentou às gravuras renascentistas de ­Albrecht Dürer e similares. “À época, eu tentava desenhar os personagens dos quadrinhos. Mas, de repente, o mundo medieval ficou muito mais interessante para mim”, diz.

A Bruxa, sensação no Festival Sundance em 2015, mostra a batalha entre o puritanismo e o ocultismo no século XVII – Imagem: A24

O fascínio do jovem Eggers pelo passado misturou-se a um interesse igualmente aguçado pelo teatro. No colégio, dirigiu uma interpretação teatral radicalmente estilizada do clássico filme de vampiro expressionista alemão Nosferatu. Anos mais tarde, em Nova York, estudou atuação e se interessou pelo teatro de rua. O cinema veio depois. Autodidata, ele descreve seu primeiro curta-metragem experimental como absolutamente terrível. “Entrou em um festival”, diz, “e, voltando para casa, decidi que tinha de fazer algo melhor.”

Hoje, vestido com roupas pretas, com uma barba bem cuidada, anéis ornamentados nos dedos e um olhar aguçado, ele ainda parece mais propenso a ler poesia para você do que propor uma luta de boxe. “Estou chocado por ter feito um filme tão machista”, diz. “Essa coisa toda é uma surpresa para mim: o estereótipo machista da história, você sabe, juntamente com a apropriação indevida da cultura viking pela direita, me deixou meio alérgico a isso, e eu, simplesmente, não queria ir lá.”

Essa impressão mudou durante umas férias na Islândia: “Todo mundo diz isso, mas as paisagens eram incrivelmente inspiradoras, épicas e pré-históricas. Foi o poder dessas paisagens que me fez pegar as sagas islandesas.” A viagem gerou a ideia de um filme viking, feito no estilo Eggers, com os reinos físico e espiritual próximos a ponto de se sobreporem de forma desorientadora.

“Às vezes, é frustrante ser um cineasta americano. Porque até os pequenos filmes estão muito preocupados em gerar lucro, e isso envolve sua marca e sua identidade”, diz. “Isto vai soar muito afetado – sinta-se à vontade para vomitar –, mas a ideia de que artesãos medievais estão fazendo isso para Deus é algo que me atrai.”

No lugar de Deus, temos, neste modelo, os estúdios, e Eggers ainda parece um pouco surpreso por ter conseguido que um deles investisse em sua ideia metafísica, embora extremamente violenta, de um épico viking. Resta saber se O Homem do ­Norte vai gerar um lucro significativo. Parece, de toda forma, um filme feito para durar.

“Tudo em que sou bom, ou me torna único, não serve para fazer um filme da Marvel”, constata

Eggers, por sua vez, prefere continuar se alternando entre projetos independentes e de estúdio: “Estou orgulhoso do filme, mas nem tudo é exatamente como eu esperava que fosse. Então, eu gostaria de fazer algo com o escopo e a escala em que eu possa realmente colocar na tela o que tenho na imaginação. Tudo em que sou particularmente bom, ou que me torna único, não serve para fazer um filme da Marvel”.

Eggers não assiste a filmes de super-heróis. Deixou-os para trás com os quadrinhos de sua infância, mas, recentemente, abriu exceção para Batman, de Matt ­Reeves, que o impressionou: “Eu o assisti realmente só porque Rob (Pattinson) é meu amigo. Mas gostei e, sinceramente, aprendi muitas coisas com ele. Eu aplaudo Matt Reeves por conservar uma identidade e fazer um filme como este. Eu não posso imaginar. Acho que acabei de fazer um grande filme, mas não é a mesma coisa”.

Além de falar em “filme menor”, ­Eggers evita dar pistas sobre o que planeja a seguir. “Respeitosamente, vou ser evasivo sobre isso”, diz, sem negar que uma releitura de Nosferatu, seu favorito na adolescência, ainda fervilha.

Agora que seu épico está no mundo, ele diz desejar, simplesmente, ter algum tempo para escrever, respirar e ser pai. Após 17 anos em Nova York, ele e Alexandra mudaram-se para Belfast, na Irlanda do Norte, para a produção de O Homem do Norte. Eggers está pensando em se mudar permanentemente para Londres. “Minha mulher e eu somos de New Hampshire. Passamos algum tempo lá recentemente. E é de partir o coração que, de muitas maneiras, esteja mais retrógrado e dividido do que quando éramos crianças. Isto é triste. Não que as coisas estejam confortáveis na Europa, exatamente.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Estranhamente autêntico”

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