Cultura
Sobre a dor das ficções
Em Segunda Casa, Rachel Cusk volta a exercitar seu olhar distanciado e tragicômico


Por que vivemos com tanta dor nas nossas ficções? Por que sofremos tanto com coisas que nós mesmos inventamos? Você entende isso, Jeffers? Eu quis ser livre minha vida inteira e não consegui libertar nem um dedinho do pé”, escreve M., a narradora de Segunda Casa.
Este breve parágrafo abriga vários dos elementos presentes no primeiro trabalho lançado por Rachel Cusk depois da elogiada trilogia Esboço (2014-2018), que sedimentou seu nome no cenário literário contemporâneo.
Segunda Casa pode ser definido, não sem o risco do reducionismo, como um livro-conversa, no qual a narradora tenta elaborar aquilo que ela própria ficcionalizou, inventou, viveu, recriou ou negou. Jeffers, um personagem sem ação, é o interlocutor a quem ela se dirige nesta construção. A liberdade, por fim, ronda as páginas do livro como um ideal que, além de se mostrar inalcançável, pode levar ao salto à beira do precipício.
Assim como acontece na trilogia Esboço, a narradora é uma escritora. Mas, desta vez, Cusk expande suas reflexões para outros terrenos da criação. O personagem que desestabilizará M. é um pintor cuja obra impactou tanto a protagonista que ela decide convidá-lo para ir à sua casa, num pântano supostamente idílico.
Na intimidade doméstica, a autora fará aquilo que, nos últimos anos, tem sido apontado pela crítica como um de seus talentos: revelar, a partir de uma linguagem marcada pelo distanciamento e com pendor para o tragicômico, o contraditório que habita todos, e cada um.
SEGUNDA CASA.Rachel Cusk. Tradução: Mariana Delfini (168 págs., 62,90 reais)
Vitrine
Montada pela primeira vez em 1917, na Itália, a peça Assim É (Se Lhe Parece), de Luigi Pirandello (1867-1936), ganha uma nova edição pelo selo Tordesilhas (200 págs., 39,90 reais). O texto, no Brasil, teve uma montagem histórica, em 1953, pelo TBC, com Cleide Yáconis e Paulo Autran como protagonistas.
As Vinte Mil Léguas de Charles Darwin – O Caminho Até A Origem das Espécies (Fósforo, 320 págs., 69,90 reais), de Leda Cartum e Sofia Nestrovwki, nasce do Podcast Vinte Mil Léguas, sobre ciência e livros, e baseia-se nos roteiros dos episódios. Revisitado pelas autoras, Darwin surge como um sagaz narrador.
Andrea Abreu, autora de Pança de Burro (Cia. das Letras, 192 págs., 69,90 reais), nasceu nas Ilhas Canárias e é apontada como uma voz promissora na literatura. Em um cenário no qual a natureza se impõe, rural e contemporâneo interagem e as duas protagonistas vivem sua juventude de forma intensa e desconcertante.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os ecos de Preussenschlag”
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