Economia
Bolso vazio
Números negativos explodem e desnudam a falência da política econômica


Uma explosão de indicadores negativos sugere que a economia do País opera em curto-circuito após sete anos de austeridade, com efeitos agravados por crises externas e internas no período. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo revelou que 77,5% das famílias estavam com dívidas em atraso em março, o maior índice dos últimos 12 anos. O elevado desemprego crônico aumentou a busca por empréstimos para quitar dívidas e comprar comida, inclusive por meio do crédito rotativo do cartão de crédito, com recorde de utilização em 2021, de 224,7 bilhões de reais, segundo o Banco Central. É o maior valor dos últimos dez anos, impelido pela elevação contínua dos juros, da inflação e do endividamento das famílias. No fim do ano passado, os juros do cartão de crédito chegaram a 349,6%, o maior valor desde 2017, de acordo com o BC. O crédito total para pessoas físicas aumentou 36% em 2021.
A situação das empresas também não está fácil. Em março, houve 88 pedidos de recuperação judicial no País, elevação de 12,8% em relação ao mesmo mês do ano anterior, segundo o Indicador de Falências e Recuperação Judicial da Serasa Experian. Uma sondagem da Confederação Nacional da Indústria constatou aumento da preocupação dos empresários com a queda no consumo e os juros altos no Brasil, e outro estudo da Serasa mostrou que 15,8% dos produtores rurais estavam inadimplentes em março. A combinação de inflação de alimentos duas vezes superior ao Índice Geral de Preços, desemprego elevado e queda do rendimento real do trabalhador completa o cenário desolador de uma economia acorrentada ao baixo crescimento, à renda declinante e à falta de perspectivas.
A sucessão de indicadores ruins retrata um encadeamento de efeitos negativos que mantém a economia estagnada
Além de retratar ondas sucessivas de inadimplência e de retração, os indicadores negativos divulgados nas últimas semanas refletem, segundo economistas, o colapso previsível da atual política econômica. A pane é generalizada e caracteriza-se por um encadeamento de efeitos negativos que leva a economia para baixo em um movimento contínuo que inclui reduções cumulativas dos investimentos públicos e privados, da geração de emprego e de renda, a multiplicação dos calotes de dívidas e das insolvências de empresas, com números sempre piores a cada nova divulgação dos indicadores.
Os investimentos diretos do governo federal atingiram 2,05% do PIB em 2021, a menor proporção dos últimos 17 anos, conforme registrou o Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Há cerca de 7 mil obras paralisadas no País, a um custo de cerca de 9,5 bilhões de reais, segundo os jornais. “Até houve um aumento da taxa de investimento, mas muito concentrado em tratores para o campo e no reconhecimento contábil das plataformas de petróleo, além da construção civil, devido aos juros baixos do ano passado”, descreve a economista Júlia Braga, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A decisão dos empresários de investir depende, em grande parte, da expectativa de retorno sobre o capital investido. Se os empresários esperam um aumento nas vendas e nos lucros, eles se sentem mais encorajados a expandir o investimento e a contratação de mão de obra. Por outro lado, se a expectativa é de queda nas vendas, eles tendem a segurar seus planos de investimento. O problema para os empresários hoje, no Brasil, é que a expectativa de expansão do mercado doméstico é muito baixa”, ressalta Rafael Ribeiro, professor de Economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais. O consumo das famílias, diz, segue estagnado, devido a fatores como elevado grau de endividamento, alta inflação e compressão da massa salarial, resultando em uma redução na renda disponível.
A política fiscal contracionista comprime os investimentos em infraestrutura – Imagem: Adenir Britto/Prefeitura de São José dos Campos
A situação retratada nos indicadores da indústria é motivo de preocupação. Apesar da amenização dos efeitos da pandemia sobre a economia, a aceleração da inflação, a elevação dos juros, o grande desemprego, a subutilização dos ocupados por insuficiência de horas trabalhadas, os gargalos das cadeias produtivas com a guerra na Ucrânia e o recrudescimento da Covid-19 na China reduziram o poder de compra das famílias, que representa 60% do PIB, e “prejudicaram sobretudo o consumo e a produção de bens”, segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. O resultado é o acúmulo, no primeiro bimestre, de uma queda de 5,8% na indústria, na comparação com o mesmo período do ano passado, igual àquela registrada no período de outubro a dezembro, sinalizando “nenhum progresso”, segundo o Iedi.
Um indicador em especial, o da inadimplência de 15,8% dos produtores rurais em março, apontada pela Serasa Experian, despertou interesse por se referir ao setor mais bem-sucedido da economia. Segundo Ribeiro, o número não necessariamente reflete uma piora da vulnerabilidade do setor. “A inadimplência dos produtores rurais segue praticamente estável na comparação com o ano anterior. Além disso, ela é muito inferior à inadimplência média das famílias, por volta dos 40%”, observa. O comportamento do setor do agronegócio, diz Braga, apresenta certa dubiedade, pois se, de um lado, é beneficiado pelos preços mais altos das commodities para exportações, por outro, é afetado pela alta dos preços dos fertilizantes e do custo do crédito. Além disso, a cadeia produtiva também é afetada pela alta dos custos dos combustíveis, inclusive na distribuição dos alimentos.
O problema para os empresários é que a expectativa de expansão do mercado doméstico é muito baixa
A relação entre os indicadores da compressão dos investimentos e os índices de emprego e remuneração fica clara quando se constatam quais são os setores da economia mais prejudicados pela austeridade do governo. O aperto de gastos prejudica com maior intensidade os grandes empregadores e isso significa que a contenção vai estourar mais adiante tanto na redução do consumo quanto na inadimplência. “A política fiscal do governo segue contracionista em áreas prioritárias e com alto poder de encadeamento, como nos setores de saúde, educação e investimento em infraestrutura. A política monetária, por meio da forte elevação dos juros, também é outro ingrediente que tende a desestimular a demanda sem resultar em ganhos concretos em termos de controle da inflação”, destaca Ribeiro.
O risco de um retrocesso econômico ainda maior é significativo. “No cenário atual, se os empresários reajustarem suas expectativas de demanda para níveis mais baixos, o que pode ocorrer é um processo de readequação da capacidade produtiva das firmas ao novo patamar das vendas esperadas. Na prática, isso significa um círculo vicioso de enxugamento e encerramento de atividades produtivas, menor perspectiva de contratação de trabalhadores e menor crescimento econômico”, pondera Ribeiro. Um declínio continuado é provável, concorda Braga, pois o mercado interno está muito desaquecido. Há um boom de commodities e o Brasil poderia se beneficiar se a isso aliasse aumento dos investimentos públicos em infraestrutura, política industrial e políticas de valorização salarial e de redistribuição de renda. O impulso das commodities fica restrito, entretanto, à indústria extrativa, não há aumento das exportações de produtos manufaturados da indústria da transformação. Falta impulso agregado suficiente, pois a queda dos salários reduz o poder de compra das famílias e a demanda interna. “Sem mercado interno, o País cresce pouco. Vale lembrar que para elevar a renda per capita é preciso um crescimento do PIB acima de 0,6% a 0,8%, que é quanto cresce a população ao ano”, sublinha Braga.
O único fator que poderia reverter esse quadro, acredita Ribeiro, é o crescimento do comércio internacional. Os planos de recuperação econômica em países como EUA e China e a alta nos preços das commodities tendem a produzir efeitos positivos na demanda pelas exportações brasileiras, mas a guerra entre Rússia e Ucrânia e as novas medidas de isolamento social na China para conter a pandemia podem prejudicar a retomada do comércio internacional. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bolso vazio”
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