CartaCapital
A Semana: Tortura escancarada
Áudios do Superior Tribunal Militar confirmam o terror de Estado


Em 2018, enquanto a banda fardada tocava o terror na campanha presidencial e se preparava para tempos de gula e luxúria à base de picanha, uísque e Viagra, o historiador Carlos Fico iniciava um projeto monumental e decisivo: a análise de cerca de 10 mil horas de gravações das sessões do Superior Tribunal Militar, aquele simulacro em que os réus podiam sempre confiar na independência e imparcialidade dos juízes tanto quanto os eleitores podiam acreditar no direito de livre escolha durante a ditadura. Os áudios cobrem uma década de reuniões, de 1975 a 1985, e só chegaram às mãos do pesquisador após uma extenuante batalha judicial, decidida em 2015 a seu favor pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. A primeira leva de conversas, devidamente analisadas, acaba de vir à tona e comprova o que só as viúvas do regime têm a pachorra de negar: a tortura era política de Estado, de conhecimento geral das instâncias, e não um desvio de caráter de meia dúzia de torturadores que só aflorava nos porões mais profundos e sórdidos. Os crimes da repressão eram temas recorrentes dos julgamentos e das conversas reservadas dos magistrados. Mais: viravam motivo de chacota. “Sobretudo em sessões secretas”, relatou Fico ao jornal O Globo, “esses ministros se sentiam muito confortáveis. Têm falas muito pesadas, grotescas, piadas com vítimas de tortura.” O historiador prossegue: “Esses ministros eram naturalmente inseridos nesse contexto autoritário, nessa ideologia extremista, segundo a qual era preciso reprimir e acabar com a subversão”. O espírito continua o mesmo, demonstra o atual vice-presidente da República, o general de pijama Hamilton Mourão. “Apurar o quê? Vai trazer os caras do túmulo?”, debochou Mourão sobre a possibilidade de os áudios estimularem investigações acerca dos crimes contra a humanidade, imprescritíveis é bom lembrar, cometidos pelo regime.
Perseguição
Em cinco anos, as denúncias de intolerância religiosa triplicaram no estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública. O total de boletins de ocorrência subiu de 5.214, em 2016, para 15.296, no ano passado. Não, não se trata de uma prova da “cristofobia”, delírio dos neopentecostais defendida por Jair Bolsonaro e que se encaixa na mesma categoria (de ficção) da “ideologia de gênero” e do “racismo reverso”. Intolerância de verdade sofrem os praticantes de religiões de matriz africana (62% das vítimas que buscam o Disque 100). Os evangélicos somam 9,8% dos casos. Os católicos, 4,8%.
Pandemia/ A hora é essa?
O governo decreta o fim do estado de emergência da Covid-19
Queiroga anunciou a suspensão em cadeia de rádio e tevê – Imagem: Mike Sena/MS
Em pronunciamento oficial no domingo 16, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou o fim do “estado de emergência sanitária nacional” iniciado em fevereiro de 2020. A média móvel por Covid-19 no Brasil chegou a cem casos, a menor desde 5 de janeiro. “Continuaremos a conviver com o vírus. O Ministério da Saúde permanece vigilante e preparado para adotar todas as ações necessárias para garantir a saúde dos brasileiros”, declarou o ministro. A decisão vai suspender mais de 2 mil normas estabelecidas durante a pandemia, entre elas a compra de medicamentos e insumos sem licitação. Ainda não está claro de que maneira os decretos e as medidas estaduais sobre isolamento, quarentena e uso de máscaras serão afetados. Segundo o ministério, um decreto vai estabelecer os prazos de adaptação dos órgãos públicos. Especialistas criticaram a decisão. “É uma atitude intempestiva. Não poderia acontecer neste momento”, afirmou Jean Gorinchteyn, secretário de Saúde do estado de São Paulo.
O cinema como arma
Totalmente desfigurada depois das alterações feitas pelo governo Bolsonaro, a Lei Rouanet pode ser utilizada para financiar conteúdos audiovisuais que fazem apologia do uso de armas. Foi o que se viu durante a Convenção Nacional Pró-Armas, realizada no fim de março, quando o então secretário de Cultura, Mário Frias, e seu auxiliar, André Porciuncula, defenderam que parte dos recursos da lei custeasse produções que criassem “novos heróis”, a serem exibidos em megaeventos que devem ocorrer nas comemorações dos 200 anos da Independência. Segundo Porciuncula, o governo tem 1,2 bilhão de reais para investir em conteúdos pró-armas.
Eleições/ Os termos da federação
PT, PV e PCdoB oficializam aliança e divulgam um programa mínimo
Mais um passo na consolidação da candidatura de Lula – Imagem: Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Agora é oficial. Na segunda-feira 18, PT, PV e PCdoB selaram uma aliança por quatro anos ao registrarem no cartório eleitoral a federação partidária, conforme as novas regras. O PSB, que inicialmente estaria entre os partidos federados, ficou de fora. Denominada de Federação Brasil Esperança, a agremiação conta com o estatuto e a carta-programa, que deverão ser seguidos pelas legendas na vigência da aliança. Dentre as propostas estão a revogação da reforma trabalhista e da Emenda Constitucional 95, conhecida como Lei do Teto de Gastos. O programa também defende a criação de marcos legais para regular as plataformas digitais, como forma de barrar a indústria de desinformação, propõe a ampliação de acesso à internet e a construção de um novo programa de transferência de renda para reduzir desigualdades. A Federação Brasil Esperança defende ainda uma reforma política e eleitoral e a recriação de instrumentos de participação da sociedade civil, como conferências e conselhos. Depois do registro no cartório eleitoral, a documentação será encaminhada ao TSE.
Peru/ O lado obscuro de Castillo
O presidente propõe a castração química de estupradores
O professor aposta no folclore – Imagem: César Fajardo/Presidência do Perú
Alvo de duas tentativas de impeachment, inapetente, incapaz de apresentar um projeto de recuperação econômica, Pedro Castillo deixou aflorar o lado reacionário de sua personalidade, mantido sob controle durante a campanha eleitoral, em busca de aprovação. Na segunda-feira 18, o presidente peruano anunciou a intenção de enviar ao Parlamento um projeto de castração química de condenados por estupro. Castillo disse atender a um “clamor popular”, mas a proposta encontra resistência no próprio governo. O ministro do Interior, Alfonso Chávarry, afirmou em entrevista coletiva que a ideia precisa “ser reavaliada” e não poderia ser aplicada sem “estudo”. Segundo dados oficiais, 15 menores peruanos são estuprados diariamente e as prisões acumulam mais de 10 mil condenados por crimes sexuais. A castração química fere, no entanto, os princípios defendidos pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU. Em declaração anterior ao anúncio do presidente peruano, a comissária Michelle Bachelet condenou a prática: “O estupro é um crime monstruoso, os criminosos têm de ser punidos, mas pena de morte e tortura não são a resposta”.
Intolerância
A polícia sueca prendeu ao menos 40 manifestantes após os violentos protestos contra a iniciativa de um grupo de extrema-direita de queimar cópias do Corão em praça pública. As manifestações, iniciadas na quinta-feira 14, deixaram 26 policiais e 14 civis feridos e tiveram início após a entrada no país de Ramus Paludan, sueco-dinamarquês líder do movimento “Linha Dura”, que combate a imigração e o islamismo. Condenado na Dinamarca por “insultos racistas”, Paludan fugiu para a Suécia, onde pretende reproduzir os eventos de queima do livro sagrado dos muçulmanos.
Abuso/ A cabeça de Assange na bandeja
A Justiça britânica autoriza a extradição do fundador do WikiLeaks
As chances de a defesa de Assange reverter a decisão são mínimas – Imagem: Justin Tallis/AFP
Enquanto o bilionário Elon Musk, o ex-presidente Donald Trump e suas imitações mundo afora fazem alvoroço pelo direito de espalhar mentiras impunemente nas redes sociais, um verdadeiro atentado à liberdade de expressão acaba de ser cometido no Reino Unido. A Justiça britânica expediu, na quarta-feira 20, a autorização da extradição para os Estados Unidos de Julian Assange, fundador do WikiLeaks, responsável por divulgar milhares de documentos secretos que expuseram, entre outros crimes, os abusos cometidos pelas tropas norte-americanas no Afeganistão. Se a extradição for confirmada pela ministra do Interior, Priti Patel, Assange será enviado aos EUA e enfrentará um julgamento por espionagem que pode lhe render uma condenação de 175 anos. Os advogados do jornalista têm até 18 de maio para recorrer. Provavelmente, em vão. Os tribunais britânicos mostram-se favoráveis à tese de Washington e Patel é a ministra que negociou o esdrúxulo acordo que pretende enviar refugiados do Reino Unido para Ruanda, como se lê à página 47.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A Semana”
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