Economia
A preço de ouro
Além da guerra, dos transportes e do clima, a financeirização das commodities eleva o custo dos alimentos


O saque do supermercado Inter, no bairro de Inhaúma, na Zona Norte do Rio de Janeiro, no sábado 16, retratou o drama da inflação dos alimentos e a catástrofe da fome no País considerado mundo afora celeiro do planeta e campeão em desigualdade social. O saque acontece no momento em que a alta de preços dos alimentos atinge recordes no mundo e tem efeito redobrado no Brasil, em consequência da política de austeridade, do alto desemprego crônico e da redução da proteção social aos mais vulneráveis, entre outros motivos. A sucessão de fracassos na sua área não impediu, entretanto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, de anunciar que apresentaria o Brasil como solução para o mundo em alimentos e energia, na reunião anual do FMI, Banco Mundial e G-20, em Washington.
A inflação da cesta básica atingiu 21,46% nos últimos 12 meses, diante de uma variação do IPCA de apenas 11,30% no mesmo período, segundo o Boletim da Cesta Básica da Escola de Negócios da PUC do Paraná. A alta mundial dos alimentos medida pela FAO é a maior em 32 anos e a ONU convocou todos os países para enfrentar, com ações imediatas, “as desafiadoras consequências da guerra na alimentação, energia e mercados financeiros globais que põe em risco bilhões de vidas”.
A variação da cesta básica atingiu 21,46% nos últimos 12 meses, quase o dobro da alta do IPCA
No Brasil, o direcionamento habitual do Banco Central, de combate aos preços via elevação contínua de juros, mostrou mais uma vez suas limitações no resultado do IPCA de março, que subiu 1,62%, bem acima do 1,35% esperado. Enquanto os preços dos serviços industriais cederam, à exceção dos custos dos serviços industriais, as contribuições para a alta de 162 pontos concentraram-se em transporte, isto é, gasolina, e alimentação, leia-se tomate, somando, ambas, 116 pontos, sem relação com a demanda, sublinha José Francisco Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator. Cinco itens, destaca o economista, explicam 73 desses 162 pontos, além da gasolina e do tomate: gás de botijão, leite longa vida e energia elétrica residencial, sendo que os preços administrados (gasolina, gás, energia elétrica residencial, emplacamento e licenciamento, óleo diesel, entre outros) respondem por 66 pontos. O aspecto importante a reter do detalhamento de Gonçalves é que o aumento contínuo dos juros não afeta os preços administrados, principais impulsionadores da inflação por encarecerem, em primeiro lugar, os alimentos e, depois, um amplo espectro de preços.
Vários economistas e trabalhos acadêmicos consagrados mostraram à exaustão as limitações do combate ortodoxo à inflação via altas sucessivas de juros. Um artigo da economista Maryse Farhi, professora da Unicamp, publicado no boletim de política econômica do Instituto de Economia da universidade, ressalta que a participação agregada dos bens comercializáveis e daqueles que têm preços administrados representa quase 69% do IPCA, referência para a fixação e apuração das metas de inflação. “Isso equivale a dizer que existe uma parcela de 69% do IPCA para a qual os movimentos da taxa básica de juros têm pouco ou nenhum impacto”, sublinha Farhi.
Nos EUA, de modo semelhante, o aumento do CPI, equivalente ao nosso IPCA, de 8,5% em março, foi impulsionado por combustíveis, alimentação e moradia, e a resposta do governo foi aumentar os juros. “A elevação das taxas visa resolver o problema encolhendo a demanda agregada, mas a demanda por esses itens essenciais é quase impossível de comprimir. O mais provável é que a elevação dos juros crie desemprego nos Estados Unidos e uma nova crise da dívida nos países do Sul Global do que consiga um controle rápido da inflação”, alerta a economista Isabella Weber, professora da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Nas respostas à crise da inflação de alimentos, tanto em Brasília quanto em Washington, vale o mesmo critério de decisão, resumido pelo economista Esfandyar Batmanghelidj, diretor do think tank Bourse & Bazaar Foundation e especialista em desenvolvimento econômico. Diz o economista: “Os formuladores de políticas estão focados na produção de dinheiro e no preço do dinheiro, embora a crise seja em grande parte, se não predominantemente, sobre a produção de bens e o preço desses bens”. Batmanghelidj aponta para o que parece ser a causa mais profunda e permanente da crise e da inflação de alimentos, ofuscada pela superposição de problemas logísticos e de transporte desde a pandemia, guerra na Ucrânia e mudanças climáticas. O cerne do problema seria a captura e a manipulação do mercado de commodities alimentícias e energéticas pelo sistema financeiro, na esteira da dominância do dólar sobre a economia mundial e a sua financeirização.
Nos países ricos, ressalta a economista Jayati Ghosh, professora de Economia da Universidade de Massachusetts Amherst, legisladores ainda confiam em grande parte nas ferramentas macroeconômicas para enfrentar a inflação, mas um conjunto de alta de preços é diferente dos outros: a inflação dos produtos alimentícios. Não só este fenômeno tem um impacto direto muito maior na vida dos indivíduos, especialmente nas economias em desenvolvimento, como reflete causas mais complexas, e cuidar dele de modo eficaz requer um grupo de estratégias completamente diferente. “Infelizmente, os governos não estão discutindo essas estratégias o quanto seria necessário”, critica.
A elevação dos juros visa encolher uma demanda de itens essenciais que é quase impossível comprimir
Esta negligência, prossegue a economista, é profundamente perturbadora, pois enquanto de 2015 a 2020 os preços dos alimentos ficaram relativamente baixos e estáveis, em 2021 dispararam, em média, 28%. “Muito dessa disparada foi puxada pelos cereais, com os preços do milho e do trigo subindo 44% e 31%, respectivamente. Contudo, os preços de outros itens alimentícios também subiram: o preço do óleo vegetal atingiu uma alta recorde ao longo do ano, o açúcar ficou 38% mais caro e as altas de preços dos produtos de carne e laticínios, embora mais baixas, ainda estavam nos dois dígitos”, contabiliza Ghosh.
A inflação atual dos preços de alimentos supera a alta no índice geral e é ainda mais alarmante considerando-se a significativa queda nos salários dos trabalhadores durante a pandemia, em especial nos países de baixa e média renda. Esta combinação letal de comida mais cara e salários menores impulsiona altas catastróficas na fome e na desnutrição. Problemas na cadeia de abastecimento, em especial com o transporte, têm sido uma das principais causas da alta de preços, inclusive dos grãos, que subiram rapidamente em 2021, apesar de uma produção mundial recorde de cerca de 2,8 bilhões de toneladas. Abrir mão de todo controle e deixar os preços flutuarem livremente no mercado, como defendem os economistas liberais em qualquer situação, não faz, portanto, sentido em um contexto complexo em que nem mesmo a oferta colossal de uma safra global recorde conseguiu impedir uma explosão do preço dos grãos.
Ao contrário da ineficácia da terapia de choque praticada por governos e bancos centrais, há ações bem-sucedidas, testadas em vários países, para conter altas dos preços dos alimentos, a exemplo de restrição das exportações dos alimentos, fixação temporária de preços, eliminação de tarifas, intervenções governamentais nos mercados e acordos entre governo e o setor privado, destaca um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (Iica).
Financeirização. Os preços das commodities estão fora da realidade física – Imagem: Lucas T. Hans/Marinha dos EUA
“O que o governo pode fazer contra a inflação de alimentos? Na Bolívia, desde 2008 os governos do Movimiento al Socialismo, de Evo Morales, limitam a exportação de alimentos da cesta básica para controlar seus preços. O governo golpista de 2019-2020 acabou com isso, e o novo governo do MAS retomou a medida”, destaca João Telésforo, pesquisador de economia e finanças verdes.
Entre as experiências bem-sucedidas de combate às altas dos preços dos alimentos no Brasil, destaca-se a combinação de políticas aplicadas pelo governo entre 2002 e 2014, de estímulo à agricultura familiar produtora de alimentos associada à política de estocagem de grãos e cereais. Esse processo foi beneficiado pela menor incidência do custo de combustíveis e de transporte, com a suavização dos repasses da variação internacional da cotação do petróleo e do dólar possibilitada pela estrutura verticalizada da Petrobras. Todas essas políticas foram desmanteladas a partir de 2016 e em grande medida reapareceram na pauta da Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras deste ano, propostas pelas centrais sindicais, incluída uma revisão da política de preços de produtos essenciais, o fortalecimento da agricultura familiar, a formação de estoques reguladores e a retomada das políticas de aquisição de alimentos.
Segundo o economista James K. Galbraith, professor da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, políticas de controle de preços, adotadas em vários momentos ao longo de quatro décadas após a Segunda Guerra Mundial, estão relacionadas com o crescimento, a criação de emprego e a produtividade sem precedentes nesse período. “Essas políticas foram sumamente efetivas, razão pela qual os economistas tradicionais as consideravam indispensáveis”, afirma Galbraith no artigo The Case for Strategic Price Policies, publicado no portal Project Sindycate. As políticas de controles de preços tinham dois objetivos, manejar emergências como a guerra e coordenar as expectativas de preços e salários chave em tempos de paz. O argumento para eliminar as políticas de preços bem-sucedidas, destaca Galbraith, foi impulsionado por lobbies empresariais que se opunham aos controles porque interferiam nos lucros e no exercício do poder de mercado. “Economistas de direita, notadamente Milton Friedman e Friedrich von Hayek, deram aos lobistas uma legitimação acadêmica, evocando visões de empresas ‘perfeitamente competitivas’ cujos preços se ajustavam livremente para manter a economia em equilíbrio perpétuo com pleno emprego”, sublinha Galbraith.
De 2015 a 2020, os preços dos alimentos ficaram estáveis, mas em 2021 dispararam, em média, 28%
Um empurrão adicional para liberar os controles veio no “frenesi triunfante de desregulamentação que se seguiu ao colapso da União Soviética”, nos anos 1990, acrescenta Tim Sahay, especialista em clima e sistemas complexos, em artigo na revista The American Prospect. “Pode parecer inacreditável hoje”, escreveu, “mas até o surgimento do Commodity Futures Modernization Act, de 2000, os investidores de varejo não tinham como apostar nas tendências dos preços das commodities. Os fundos de índice simplesmente ainda não existiam. Bancos de investimento e companhias de petróleo introduziram disposições de última hora em uma lei no Congresso, isentando da regulamentação a negociação de contratos futuros e swaps de energia e metais.”
O que parecia um pensamento inteligente baseado no mercado, prossegue Sahay, provou ser bom apenas para os traders. Os contratos futuros foram apresentados como uma ferramenta para diversificar o risco de portfólio, mas, em vez disso, eles o agravaram. O efeito mais importante foi que a combinação de liberalização da regulação com novos instrumentos financeiros mostrou-se fatal para as populações. “Anteriormente não correlacionados, petróleo, alimentos e metais tornaram-se cada vez mais vinculados como uma nova classe de ativos voláteis. À medida que os fundos de índice de commodities proliferavam, distúrbios locais nos rendimentos das colheitas, amplificados por apostas alavancadas de traders, ganharam o poder de abalar os mercados globais, desestabilizando os preços em áreas distantes com efeitos em cascata.”
Os altos preços dos alimentos são apontados como culpados pela eclosão da Primavera Árabe, mas eles não tinham nada a ver com as colheitas, e tudo a ver com o dinheiro órfão da crise de 2007 que farejava oportunidades de retorno, desencadeando protestos contra os preços dos alimentos em 2008, descreve Rupert Russell no livro Price Wars: How The Commodities Markets Made Our Chaotic World. “Isso é o que significa financeirização”, diz. “Significa que os preços das commodities entram em uma constelação de preços financeiros. Eles estão desvinculados da realidade física.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A preço de ouro”
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