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Os órfãos da esquerda

Entre Macron e o voto em branco, os eleitores de Jean-Luc Mélenchon vão decidir o futuro da França

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Dia D. No domingo, os franceses vão escolher entre a continuidade de Macron ou a guinada extremista com Le Pen - Imagem: Avec Vous 2022 e MLFrance 2022
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Emmanuel Macron está engajado na batalha de sua carreira para convencer os eleitores de esquerda, muitos dos quais foram às ruas para se opor ao seu governo nos últimos cinco anos, a comparecerem no próximo domingo e lhe darem um segundo mandato. Tanto Macron quanto Marine Le Pen precisam conquistar uma parte dos 7,7 milhões de franceses que votaram no candidato de esquerda Jean-Luc Mélenchon, derrotado por pouco no primeiro turno.

Na cidade de Trappes, a sudoeste de Paris, onde quase 61% dos eleitores escolheram Mélenchon, as opiniões estão divididas sobre o que farão agora. O jornal Le Figaro sugeriu que “na autoestrada presidencial, Macron tenta uma sutil curva à esquerda”. Mas, questionado sobre o que presidente pode fazer para atrair a esquerda, o prefeito de Trappes, Ali Rabeh, ex-integrante do Partido Socialista, inverteu a pergunta. “Para ser honesto, seria melhor que ele se calasse, porque cada vez que abre a boca exaspera os nossos eleitores, e isso os encoraja a não votar, ou votar em branco”, disse Rabeh, que fez campanha por Mélenchon. “Se Macron vai dizer algo, deve ser uma mensagem clara de compromisso, não algo vago como talvez diminuir sua proposta de aposentadoria de 65 para 64 anos e meio. Os eleitores não ­estão tão adormecidos, isso é apenas brincar com fogo.”

Mélenchon aconselhou os partidários de que “nem um único voto deve ir para Le Pen”, mas deixou claro que o segundo turno equivale, como dizem os franceses, “à peste ou à cólera” para quem é de esquerda. Rabeh acredita, com relutância, que não há escolha. “Le Pen está em condições de vencer e, se o fizer, serão os mais vulneráveis, as minorias, os imigrantes, os sem-documento, que mais sofrerão. Não vou fazer campanha por Macron, mas não acho que temos escolha. Não devemos subestimar o apoio à extrema-direita.”

No domingo 17 houve aumento inesperado para Mélenchon, que terminou logo atrás de Le Pen. Quase 22% dos eleitores escolheram o líder de esquerda do La France Insoumise (A França Insubmissa) e agora se sentem “politicamente órfãos”, disse Rabeh.

As pesquisas sugerem que 30% dos eleitores de Mélenchon podem votar em Macron, 23% em Le Pen, e o restante se absterá ou votará em branco no próximo domingo.

Trappes, cujos moradores mais famosos incluem o ator Omar Sy, o jogador de futebol Nicolas Anelka e o comediante francês Jamel Debbouze, tem uma grande população de imigrantes, muitos com raízes norte-africanas. A extrema-direita afirmou que a cidade é um foco de radicalização religiosa. Em fevereiro, ­Jordan Bardella, líder em exercício do ­Rassemblement National (Reunião Nacional) de Le Pen, foi oficialmente investigado por discurso de ódio depois de descrever a cidade como uma “República Islâmica”. Rabeh, filho de imigrantes marroquinos, descreve as declarações como uma estigmatização injusta.

“Não devemos subestimar o apoio à extrema-direita”, diz Ali Rabeh, prefeito de Trappes

No mercado de Trappes, na sexta-feira 15, Clement Likwengi, 52 anos, consultor de segurança contra incêndios, disse: “Os habitantes daqui nunca votarão em Le Pen pela simples razão de que ela representa a política de divisão. Acho que os eleitores na França esquecem que ­Macron reviveu a economia francesa, reduziu o desemprego e cuidou das pessoas durante a crise da Covid. Ele fez o trabalho”. Likwengi disse que votará em Macron no próximo domingo e espera que seu filho, de 27 anos, e sua filha, de 19, que eram entusiásticos apoiadores de Mélenchon e estavam “extremamente decepcionados” com sua derrota, façam o mesmo.

Thierry, 59 anos, um construtor que não quis dar seu nome completo, votou em Mélenchon no primeiro turno, mas disse que não apoiaria nenhum dos candidatos no segundo. “Não há nada que Macron possa me dizer para me fazer mudar de ideia. Ele teve dez anos de vida pública, cinco no Ministério das Finanças e cinco como presidente, então sabemos o que ele fez e fará. Vou votar, mas vou votar em branco. Claro que me preocupo com a possibilidade de Le Pen vencer, especialmente para a comunidade aqui em Trappes, mas, como dizemos, o medo não deterá o perigo.”

Hania Maouch, 47 anos, que fazia compras com sua filha Ghalia, de 16 anos, disse que sua família e amigos votaram em Mélenchon no primeiro turno. Ela admitiu que muitos estavam indecisos sobre o segundo. “Ficamos decepcionados com Mélenchon. Acho que metade votará em Macron e metade não votará nada”, disse.

Mélenchon iniciou uma consulta a 315 mil integrantes do partido para decidir sobre uma resposta coletiva à questão de em quem votar no domingo. Em uma carta aos apoiadores, ele escreveu: “Um e outro não são os mesmos”.

Manon Aubry, do La France ­Insoumise de Mélenchon, disse ao Observer que não cabia ao partido orientar os apoiadores sobre como votar, mas acrescentou: “Sabemos que Le Pen é perigosa. Se ambos os candidatos desprezam a classe trabalhadora, ela acrescenta um desdém pela raça. Se ambos oferecem política liberal, ela acrescenta a xenofobia”.

Descrevendo Macron como “o menos pior”, ela acrescentou: “Não temos nada para negociar com ele. Cabe a Macron dizer o que fará para lidar com a raiva que muitos sentem em relação a ele”.

Foi essa raiva que provocou protestos em várias universidades, incluindo a ­Sorbonne e a Sciences Po na semana passada, com estudantes gritando “Nem Macron nem Le Pen”.

Na sexta-feira, vários homens idosos do Magreb – sentados ao sol da primavera, conversando perto do mercado de ­Trappes – disseram que não tinham direito de votar na França, mas não estavam particularmente preocupados com o resultado. “Macron vai vencer e a vida vai continuar como antes”, disse um. E a ameaça de Le Pen de deportar estrangeiros? “Ela diz isso, mas não vai acontecer”, acrescentou.

Rabeh teme que essa indiferença esteja profundamente equivocada. “Infelizmente, acho que vamos ter de tapar o nariz e votar em Macron.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os órfãos da esquerda”

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