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O jardim de uma igreja expõe os tenebrosos segredos do massacre de Bucha

Imagens de satélite da vala comum na Igreja de Santo André Apóstolo mostram uma verdade irrefutável às mentiras do Kremlin

O jardim de uma igreja expõe os tenebrosos segredos do massacre de Bucha
O jardim de uma igreja expõe os tenebrosos segredos do massacre de Bucha
Cena macabra. Estima-se que 150 civis foram sepultados no jardim de uma igreja - Imagem: Genya Savilov/AFP e Ronaldo Schemidt/AFP
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Às vezes, os mortos têm mais a dizer do que os vivos. Aqueles que estão sob a terra macia e amarelada ao redor da Igreja de Santo André Apóstolo, na cidade ucraniana de Bucha, têm muitas histórias terríveis para contar. Em uma vala comum profunda, um antebraço e uma mão, com as pontas dos dedos quase pretas, jaziam sob um pé em um ângulo repugnante; o braço de outro homem parecia cavar para fora do solo remexido, tentando escapar do seu destino.

Na manhã de sexta-feira 8, uma equipe de investigadores forenses de Kiev chegou ao local para começar a documentar o terror infligido a civis por tropas russas durante a invasão ordenada há seis semanas por Moscou. Eles amarraram uma porta a uma escavadeira municipal para fazer uma maca improvisada e começaram a trabalhar. Todas as pessoas que eles descobriram haviam morrido violentamente. Em um homem faltava um grande pedaço do crânio. Outro corpo estava tão gravemente queimado que apenas sua cabeça e metade do torso permaneciam, o branco dos olhos oculto pela carne carbonizada. Uma pessoa parecia ter sido decapitada.

À medida que cada novo cadáver era colocado à sua frente, o investigador principal ajoelhava-se sobre ele e murmurava um relatório, enquanto um colega anotava: jaqueta de couro, telefone celular, sem identificação. Ele verificou o interior de bocas em decomposição, a amplitude de movimento de membros quebrados e documentou queimaduras, buracos de bala e ferimentos causados por estilhaços, antes que voluntários da cidade ajudassem a colocar cada cadáver em um saco novo. Suas luvas de plástico rosa e azul logo ficaram escorregadias de sangue. Entre cada corpo, os trabalhadores enfiavam as mãos na pilha de terra de 1 metro retirada da cova até agora, e a esfregavam entre as mãos para recuperar o controle.

Uma chuva forte interrompeu os trabalhos. No fim do dia, a equipe havia exumado 18 cadáveres. Mas muitas outras pessoas desaparecidas de Bucha também estão para ser encontradas. Uma rica cidade a noroeste de Kiev antes do início do conflito, o nome Bucha hoje é sinônimo de crimes de guerra russos. Após um mês de combates, seus soldados se agruparam em posições a cerca de 40 quilômetros a nordeste e noroeste da capital e, sem conseguir avançar, Bucha foi um dos primeiros lugares de onde Moscou se retirou para reconcentrar suas forças no leste da Ucrânia. A escalada da violência contra civis que ocorreu aqui – assassinatos, estupros, tortura, saques – é horripilante.

Em um dia, equipe forense examinou 18 corpos com nítidos sinais de tortura e execução

“O necrotério não tinha eletricidade e rapidamente ficou cheio. Ainda havia muitos corpos nas ruas”, disse Serhiy Kaplychnyy, que supervisiona funerais e registros de óbitos no município de Bucha.

“Tivemos de implorar aos russos que nos deixassem enterrá-los. Eles nos disseram que ainda estava frio, então não importava, podiam ficar largados lá. Mas os cachorros estavam começando a comê-los. No final, os convencemos de que era uma questão sanitária e eles nos deixaram cavar a vala na Igreja de Santo André Apóstolo, já que era perto de sua posição militar, do necrotério e do hospital.” A primeira parcela de corpos chegava a 70, disseram vários moradores. Em seguida, houve um segundo enterro em massa de outras 33 pessoas. No total, acredita-se que cerca de 150 civis estejam ali no terreno da igreja.

Um grupo de duas dúzias de moradores de Bucha esperava, do outro lado da igreja, que os corpos de seus entes queridos fossem desenterrados, na sexta-feira 8. Ludmyla Skakalova, uma paramédica com o rosto exausto, disse que foi uma das quatro pessoas que continuaram trabalhando no hospital da cidade depois que seu último médico foi ferido, e que também abriram as portas para russos feridos. “Os soldados também nos atacaram”, conta. “Uma vez, os russos ligaram e disseram que havia uma emergência, para atrair um dos motoristas da ambulância e alguém da defesa territorial. Então um franco-atirador disparou contra eles. O motorista morreu.”

Atiradores atingiram as pernas de civis enquanto tentavam tirar água de um poço, matando pelo menos uma mulher, disse Tatyana Lipinska, voluntária no telefone de ajuda do conselho da cidade de Bucha, e soldados sequestraram pelo menos um voluntário que entregava remédios a idosos.

Kukharenko Vyacheslav, um homem grande de 47 anos com voz suave e olhos azuis brilhantes, passou a maior parte do dia chorando baixinho ao lado do túmulo. Ele não estava procurando por um ente querido. Sentia-se culpado e, segundo disse, torturado pelo que descreveu como sua própria “covardia” diante da invasão, e sentia a necessidade de dar seu testemunho.

Guerra de versões. Ao sair de Bucha, os russos deixaram para trás dezenas de corpos expostos na rua. O chanceler Lavrov acusa os EUA de “encomendar as mortes” – Imagem: Governo dos Emirados Arabes, Ronaldo Schemidt/AFP e STR/AFP

“Voluntários de uma aldeia próxima tentaram vir nos ajudar e os russos atiraram neles na rua. Então meu vizinho saiu para ajudar e eles o mataram também”, disse. “Éramos 11 crianças e dez adultos, todos escondidos num porão, e eu tinha muito medo que o bebê mais novo chorasse e fizesse os russos descobrirem onde estávamos.”

Alguns dias depois, Vyacheslav conversou com um grupo de soldados durante uma hora, quando eles vieram verificar os passaportes da família. “Perguntei: ‘Por que vocês estão fazendo isso?’, e eles responderam que eram apenas ordens. Eles sabiam que outras unidades estavam matando civis, mas disseram que não eram eles, que somos irmãos. Que tipo de irmão chega em sua casa em um tanque e atira no seu vizinho?”, indaga

Haylena Fiaktistava, de 70 anos, estava entre os que esperavam encontrar respostas na vala comum. Ela passou a ocupação abrigada em casa com seus dois filhos, Dmitro e Andrei, mas um dia ­Dmitro saiu de casa para procurar pão e não voltou. Durante uma pausa no bombardeio, três dias depois, Haylena e ­Andrei saíram e o encontraram caído de bruços no meio da estrada, a algumas ruas de distância, com buracos de bala nas costas. Outro parente ajudou Andrei a levar o corpo de Dmitro para o necrotério, mas estava cheio. Sem saber o que fazer, eles o deixaram sob o toldo do pequeno prédio branco. Mais tarde, souberam que todos os corpos no necrotério haviam sido enterrados em volta da igreja.

“Escrevemos seu nome e endereço num pedaço de papel e o colocamos dentro de uma de suas meias para que possamos encontrá-lo novamente”, disse ela. “Só quero dar a ele um funeral adequado.”

Quando surgiram imagens de satélite da vala comum na Igreja de Santo André Apóstolo, no início desta semana, antes que as tropas ucranianas voltassem a entrar na cidade, a Rússia apressou-se a negar as atrocidades cometidas. Imagens e fotografias de civis mortos foram “encomendadas” pelos EUA para manchar a reputação de Moscou, disse o Ministério das Relações Exteriores russo.

“Que tipo de irmão chega em sua casa em um tanque e atira no seu vizinho?”, indaga um sobrevivente

Os eventos na igreja de Bucha na sexta-feira 8 mostram uma verdade irrefutável às mentiras do Kremlin. Um capelão militar chegou logo após o início da exumação da vala comum. Ele vestiu uma estola sobre o uniforme e segurou uma cruz de madeira, enquanto abençoava o buraco com ­água-benta e cantava um serviço memorial ortodoxo. Anna Stefaniuk, juntamente com seu marido, Volodymyr, e sua mãe, ­Natalia ­Lukyanenko, observaram silenciosamente o trabalho dos investigadores. Stefaniuk estava sentindo falta de seu irmão, filho de Lukyanenko; Volodymyr também procurava um irmão. A família estava ao mesmo tempo desesperada por respostas e com medo do que o túmulo poderia lhes revelar.

Quando o quarto saco com cadáver foi aberto e mostrado aos enlutados, ­Volodymyr soltou um grito angustiante e caiu no chão. A sepultura tinha revelado um de seus muitos segredos: os restos mortais de seu irmão estavam entre o emaranhado de membros torturados e rostos ensanguentados. Um vento cortante soprava quando ele cobriu o rosto e soluçou. Anna inclinou-se sobre ele, encostando sua cabeça na do marido.

O canto dos pássaros da primavera ecoava dos altos arcos da igreja. Não muito longe do portão, botões azuis e amarelos de açafrão começavam a forçar a passagem através do solo, as primeiras flores de uma primavera como nenhuma outra na Ucrânia. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A verdade exumada”

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