Cultura
Em ‘Extermine todos os brutos’, Raoul Peck revê as marchas imperialistas
O documentário revolve o cemitério da história, a fim de mostrar como a chamada civilização deixou um rastro de destrutividade


Civilização, colonização e extermínio são as três palavras que resumem a história da humanidade”, define o cineasta Raoul Peck no início de Extermine Todos os Brutos. O documentário em quatro partes, que estreou nesta semana na HBO Max, revolve o cemitério da história, a fim de mostrar como a chamada civilização deixou um rastro de destrutividade que ela se esforça para apagar.
O título refere-se a uma passagem de No Coração das Trevas, romance de Joseph Conrad que registra a insanidade da marcha imperialista dos europeus na África. A expressão foi recuperada pelo escritor sueco Sven Lindqvist num livro homônimo, de 1992, que inspira o roteiro do documentário de Peck.
Embora aponte as Cruzadas, processo de conquista do Oriente pelo cristianismo a partir do século XI, como marco zero, a jornada de Extermine Todos os Brutos começa quatro séculos mais tarde, com a conquista das Américas e a comercialização de seres humanos trazidos da África.
Os povos originários das Américas e os negros africanos foram, a partir dali, explorados, espoliados e eliminados pelos brancos. Num primeiro momento, estes se impuseram à base de armas de fogo e da destruição biológica. Mais tarde, a ciência forneceu elementos para noções racistas.
O projeto de Peck não se limita, porém, à representação audiovisual da história de que o homem é o lobo do homem.
O cineasta negro nascido no Haiti integra imagens de filmes caseiros e fotos de família para afirmar um lugar de fala e evidenciar o caráter estrutural do racismo. Sua voz rouca também impõe à narração uma dramaticidade que agrega valor.
O Holocausto e as políticas eliminacionistas praticadas por regimes totalitários no século XX demonstraram que a matança não visa apenas os não brancos. A novidade ali foi a industrialização da morte.
Embora só tenha sido criado durante a Segunda Guerra Mundial, o conceito de “genocídio” aplica-se a milhares de casos de extermínio de grupos ocorridos antes e depois.
Extermine Todos os Brutos ganha força ao amplificar o alcance desse conceito sem restringir seus exemplos à história. “O passado é o presente”, frase impressa no cartaz do filme, soa como um alarme.
Extratos de discursos de Trump, Bolsonaro e Marine Le Pen, além de imagens de Vladimir Putin, Viktor Orbán e Matteo Salvini condensados no primeiro e no último episódio, demonstram que o passado não passou. Sobre o plano final, uma imagem aérea do campo de extermínio de Auschwitz, a voz espectral de Peck lembra: “Não. Não nos falta conhecimento”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O homem é o lobo do homem”
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