Mundo
Invasão à Ucrânia uniu aliados dos EUA na Europa e no Pacífico em uma causa global
A maioria dos países da ONU condena a Rússia, mas as abstenções revelam as nuances das relações geopolíticas


“Decidam de que lado vocês estão”, afirmou Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano, ao Conselho Europeu, em referência a uma escolha que se torna cada vez mais difícil de evitar, pois a violência da invasão da Ucrânia pela Rússia cristaliza a divisão do mundo em dois campos.
O campo que apoia os russos tem se tornado mais fácil de definir a cada dia que passa da guerra. O placar codificado por cores na Assembleia-Geral da ONU nas últimas semanas, registrando os votos das resoluções que criticam o ataque e pedem um cessar-fogo, não poderia ser mais claro. Entre os 193 Estados membros representados no Conselho, houve apenas cinco pontos vermelhos a se opor à moção: Rússia, Bielorrússia, Coreia do Norte, Síria e Eritreia – um clube fechado de autocracias e regimes totalitários com terríveis registros de direitos humanos.
Eles foram cercados por um mar de verde, ao menos 140 países que apoiaram expressões de repreensão no Parlamento mundial.
A maioria é de democracias, sublinhando um dos temas da visão de política externa de Joe Biden – que o mundo se aproxima de uma luta decisiva entre democracia e autocracia, cujo resultado é incerto e, portanto, exige o engajamento ativo das nações democráticas. “A coisa mais importante que temos de fazer no Ocidente é nos unir”, declarou Biden na cúpula da União Europeia na quinta-feira 24. Pela primeira vez um presidente dos Estados Unidos participa de uma reunião do Conselho Europeu.
Índia e China, nações mais populosas, dão apoio tácito às demandas de Moscou
Autoridades norte-americanas ficaram satisfeitas ao ver que a invasão da Ucrânia uniu aliados dos Estados Unidos na Europa e no Pacífico em uma causa global, com Japão, Austrália, Coreia do Sul e Nova Zelândia aderindo às sanções. “Há uma qualidade onipresente do apelo da Ucrânia, que atravessa barreiras e é profundo. Ele transcende a Europa e a Ásia”, descreveu um alto funcionário dos EUA. “Esta é a manifestação de um entendimento que compartilhamos, um compromisso progressista comum.” O funcionário apontou um terceiro motivo, que ele argumentou ser o mais decisivo: “Nossos parceiros asiáticos não querem que a Ucrânia seja um modelo de como os problemas podem ser resolvidos no Indo-Pacífico, principalmente no que se refere a um lugar como Taiwan”.
Em meio a todo o verde no placar da ONU, entretanto, também houve uma boa mancha de amarelo – 38 abstenções de países ainda em cima do muro na votação mais recente. Isso inclui as nações mais populosas do mundo, China e Índia, que representam mais de um terço da humanidade. Além daqueles que se abstiveram, há muitos países que criticaram Moscou, sem dar o próximo passo, a imposição de sanções.
A pergunta do presidente Zelensky ao Conselho Europeu sobre tomar partido foi dirigida especificamente a Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, cujo governo votou a favor de uma resolução da ONU que deplora o ataque à Ucrânia, mas se opôs veementemente às sanções energéticas, ao fornecimento de armas à Ucrânia ou mesmo permitir que o suprimento de armas atravesse seu território. “Não há tempo para hesitar. É hora de decidir”, Zelensky alertou Orbán, apontando para o número crescente de mortes de civis. O presidente ucraniano faz sua lição de casa com seus colegas líderes e deve estar ciente de que Orbán enfrenta um forte desafio do líder da oposição, Péter Márki-Zay, que usa a impopularidade da posição dúbia do primeiro-ministro em relação à Ucrânia, ao acusar Orbán de ter trazido “vergonha à Hungria”.
Proximidade. O indiano Modi mantém vínculos com a Rússia de Putin – Imagem: Tang Karwai/Governo do Reino Unido
Algumas das outras abstenções notáveis foram sobre história, como a da África do Sul, impulsionada por antigos laços entre o Congresso Nacional Africano e Moscou. Outras representavam lealdades mutáveis. No Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos e seus aliados ficaram especialmente irritados com o papel descomprometido dos Emirados Árabes Unidos, normalmente vistos como um aliado confiável dos EUA no Oriente Médio. Mas cada vez mais o governante de fato dos Emirados, Mohamed bin Zayed Al Nahyan, encontrou uma causa comum com Moscou na oposição ao islamismo radical e à democracia na região. O príncipe herdeiro de Abu Dabi recusou ligações de Biden e enfureceu Washington há pouco mais de uma semana ao convidar o ditador sírio, Bashar al-Assad, apoiado pela Rússia, para uma visita de Estado. Abriu uma porta para o isolamento.
Nesta iminente disputa civilizacional, o voto decisivo mais importante é o da Índia, a única grande democracia que não se opôs ao ataque. O governo de Narendra Modi não apenas se absteve na ONU, ao deixar de mencionar a Rússia em sua descrição branda da catástrofe que se desenrola na Ucrânia, como também trabalha para estabelecer um mecanismo de comércio de rublos-rupias que ajudará Moscou a evitar sanções orientadas pelo dólar. Mira Rapp-Hooper, diretora do Indo-Pacífico no Conselho Nacional de Segurança dos EUA, disse na sexta-feira 25 que o governo esperava a resposta de Modi, mas sugeriu que não era sustentável.
“Acho que, certamente, todos reconheceríamos e concordaríamos que, quando se trata de votações na ONU, a posição da Índia sobre a crise atual tem sido insatisfatória, para dizer o mínimo. Mas também não é surpreendente”, disse.
A guerra na Ucrânia é um pesadelo estratégico para Nova Délhi, que há muito vê a Rússia, e antes dela a União Soviética, como um parceiro de segurança de último recurso. Mas a aventura militar mal avaliada de Vladimir Putin aumentou a dependência russa da China, colocando em dúvida o que Moscou fará no próximo surto do confronto entre Índia e China em sua fronteira.
Nova Délhi agora pensa muito sobre sua dependência militar da Rússia, disse Rapp-Hooper, acrescentando que a Índia deveria obter ajuda para se livrar dessa dependência. “Acho que a nossa perspectiva seria de que o caminho a seguir envolve manter a Índia por perto, pensando muito em como lhe apresentar opções para que ela possa continuar proporcionando sua autonomia estratégica.”
A globalização não difundiu a paz por meio da interdependência econômica
A abstenção da China é de outro tipo, que esconde o apoio em vez de refletir a ambivalência. Teria sido difícil para Pequim votar contra uma resolução que defende a soberania nacional e a integridade territorial que o país adotou como palavras de ordem de sua política externa. Mas suas declarações oficiais na ONU, nas quais pede paz, contrastam com toda a propaganda russa sobre a guerra ecoada pela mídia chinesa e pelas declarações do Ministério das Relações Exteriores, que culpam os EUA e a Otan pelo conflito. Washington agora teme que Pequim reforce seu apoio econômico a Moscou com suprimentos de armas.
A análise do governo é que a política fortemente pró-Rússia é impulsionada pelo vínculo pessoal entre Xi Jinping e Putin, que se encontraram quase 40 vezes, declararam em fevereiro que não haveria “limites” para o relacionamento bilateral e têm a prioridade comum de reduzir o tamanho dos EUA.
Economicamente, a posição de Pequim não faz sentido algum para a China, cujo comércio com os EUA e a Europa diminui sua relação econômica com uma Rússia cada vez mais empobrecida. Mas o endurecimento das linhas entre os campos globais opostos sugere que as esperanças de que a globalização difundisse a paz por meio da interdependência econômica eram infundadas. Agora que o tiroteio começou, a influência divisória da ideologia política prova ser a força mais potente. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
BECO SEM SAÍDA?
THEOBSERVER O que esperar do avanço e do desfecho da incursão russa passado um mês da invasão
por Jack Watling*
Um mês. As expectativas na Ucrânia mudaram – Imagem: Ronaldo Schemidt/AFP
Um mês depois que o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que a Ucrânia deveria ser libertada do erro histórico de sua independência, o Ministério da Defesa do país anunciou que os objetivos bélicos de Moscou se limitavam à região de Donbas e estavam em fase de conclusão. Essa queda faz parte, sem dúvida, de montar as bases para vender a operação como um sucesso para o público russo, apesar de um péssimo desempenho militar em combate. Mas isso não significa um fim rápido para o conflito.
Ao ter falhado em suas tentativas iniciais de tomar várias cidades ucranianas, e com sua logística desordenada, a Rússia foi forçada a se concentrar em um alvo de cada vez. Mariupol é o principal esforço atual. Quando a cidade portuária cair, Kharkiv provavelmente será o próximo alvo, seguido por uma tentativa de avançar para o norte ao longo do Rio Dnieper para isolar as forças ucranianas no Donbas. Se os russos conseguirem dominar Kherson, isso abriria caminho para um cessar-fogo iniciado pela Rússia, com uma ligação criada entre o Donbas e a Crimeia, e a propaganda russa alegando ter evitado um genocídio ucraniano fictício contra russos étnicos no Donbas.
Mesmo esses objetivos mais limitados prometem uma luta feroz. Kharkiv – perto da fronteira russa – foi alvo de bombardeio pesado, cuja intensidade provavelmente aumentará, e a Ucrânia tem poucas opções para evitá-lo. Por outro lado, a luta rumo ao norte ao longo do Dnieper provavelmente será recebida com firme resistência, com o fornecimento contínuo de armas ocidentais levando a fortes atritos com as forças russas. O resultado dessa luta está longe de ser inevitável.
Seria um erro grave esperar que a guerra termine neste ponto, no entanto, mesmo que o cessar-fogo local e as negociações ampliadas sugiram que a diplomacia possa prevalecer. Isto tem três motivos. Primeiro, a visão de Putin sobre Kiev como território russo por direito não terá mudado. Assim como os militares russos procuraram continuamente desestabilizar a Ucrânia e matar seus soldados durante os oito anos entre a anexação da Crimeia e a campanha deste ano, as negociações não interromperão a agressão russa, mas apenas mudarão sua intensidade e ênfase.
Em segundo lugar, exatamente porque a Rússia tem se preparado para anexar mais territórios ucranianos para que possa reivindicar a vitória, as sanções ocidentais não vão desaparecer. O resultado é que Putin tem perdido rapidamente todas as alavancas de influência no Ocidente, exceto a aplicação ou ameaça de força. Nesse contexto, qualquer calmaria nos combates provavelmente fará com que os russos busquem corrigir defeitos em seu plano de campanha, se reagrupem e ameacem uma futura campanha contra Kiev.
A terceira razão pela qual os novos objetivos declarados da Rússia não sugerem um fim iminente das hostilidades é que, precisamente por causa das expectativas dos dois primeiros pontos, a Ucrânia não desejará que um cessar-fogo permita que os russos se aprofundem em uma nova “linha de contato”. Isso equivaleria a tomar o país mordida por mordida. A Ucrânia procurará fortalecer Kharkiv e tentará evitar seu cerco, estragando a área de preparação para o segundo alvo da Rússia depois de Mariupol.
Em última análise, Kiev não se sentirá segura até que Putin seja removido do poder ou o exército russo esteja quebrado e, para esse fim, tentará continuar a matar soldados russos em solo ucraniano, pelo maior tempo possível. Além disso, prevê-se que um colapso geral das forças russas ofereça a melhor chance para a Ucrânia retomar o que foi perdido em 2014 e 2015. Tendo puxado a mão da Rússia para um espremedor, Volodymyr Zelensky não pretende deixar a Rússia retirá-la. Mesmo que quisesse, o governo de Kiev pouco poderia fazer para impedir a insurgência dos ucranianos nos territórios ocupados.
Para os parceiros internacionais da Ucrânia, essas dinâmicas colocam algumas questões difíceis. Aqueles que buscam saídas podem de fato pressionar a Ucrânia a entregar vantagens duradouras a Moscou. Para a Ucrânia, os objetivos diminuídos da Rússia oferecem espaço para ambições mais maximalistas. A questão é se o Ocidente as compartilha.
*É pesquisador sênior de guerra terrestre no Royal United Services Institute.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “As leis da atração “
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