

Opinião
A tentativa de censurar artistas no Lollapalooza evoca a ditadura
Enquanto isso, Bolsonaro e seus apoiadores permanecem promovendo desinformação e disseminando fake news pela internet


No fim de semana anterior, o Festival Lollapalooza, realizado em São Paulo, ganhou as manchetes nos meios de comunicação, não apenas pela riqueza musical e diversidade da sua grade de atrações, mas também por uma decisão monocrática de um ministro do Tribunal Superior Eleitoral. O magistrado, que chegou a formalizar uma censura às manifestações políticas durante o evento, parecia querer impedir a reação dos presentes contra um governo que tem conduzido o Brasil às ruínas.
O ministro do TSE imputava, em sua decisão, multa de 50 mil reais a artistas que fizessem manifestações políticas em suas apresentações, sobretudo contra o presidente Jair Bolsonaro. O estopim da bomba que enlouqueceu a turba bolsonarista e desestabilizou o “gabinete do ódio”, levando-os a entrar com ação contra o festival, foi o desfile ousado e supostamente “transgressor” de Pabllo Vittar com uma toalha estampada com a imagem de Lula. O ex-presidente, vale lembrar, lidera todas as pesquisas de intenção de voto ao Palácio do Planalto desde o dia em que foi absolvido do processo conduzido pelo ex-juiz Sergio Moro, também um ex-funcionário de Bolsonaro.
Invocando a própria ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, que citou, em 2016, numa defesa à liberdade de imprensa, o provérbio popular “Cala a boca já morreu”, artistas como Lulu Santos repetiram o mantra e foram ovacionados pela multidão que lotava o espaço do Lollapalooza. Além da rebeldia de figuras como Emicida, Marcelo D2, Fresno e muitos outros em relação à decisão judicial, que tentou remontar o sombrio período da ditadura militar (1964-1985), famosos como a cantora Anitta (Top 1 na plataforma de streaming de música Spotify) e Felipe Neto (youtuber mais conhecido do Brasil) prometeram pagar a multa dos que se manifestassem contra os desmandos do presidente brasileiro.
Nem foi preciso o pagamento de qualquer multa. Atrapalhados como são na gestão dos rumos do Brasil, os bolsonaristas fizeram um processo mal fundamentado, no qual constava o CNPJ errado da organização do evento. O coro da multidão do festival que em uníssono gritou “Fora Bolsonaro” e a repercussão negativa da tentativa de censura foram fundamentais para que o magistrado do TSE revogasse a própria liminar. No entanto, tentou-se justificar na primeira decisão que o festival Lollapalooza fazia propaganda eleitoral antecipada e irregular. O próprio ministro ressalvou, no despacho, que os artistas, “individualmente”, têm a garantia à ampla liberdade de expressão prevista na Constituição.
O jurista José Maurício Linhares Barreto Neto apontou, em artigo publicado no portal Consultor Jurídico, que a decisão feriu uma resolução do próprio TSE, a de número 23.671/2021, que, em seu artigo 27, parágrafo 2º, determina que “manifestações de apoio ou crítica a partido político ou a candidata ou candidato ocorridas antes da data prevista no caput deste artigo, próprias do debate democrático, são regidas pela liberdade de manifestação”. Em relação às manifestações políticas feitas pela internet, o artigo 28, inciso IV, “b”, parágrafo 6º, ainda acrescenta que “manifestação espontânea na internet de pessoas naturais em matéria político-eleitoral, mesmo que sob a forma de elogio ou crítica a candidata, candidato, partido político, federação ou coligação, não será considerada propaganda eleitoral”.
Como no Brasil nem sempre o que acerta em Chico vale para Francisco, a gente segue vendo outdoors de campanha antecipada em favor do atual e futuro ex-presidente da República por todo o País sem que a Justiça Eleitoral impeça. Além disso, Bolsonaro e seus apoiadores permanecem promovendo desinformação e disseminando fake news pela internet. Embora haja maior fiscalização e mais boa vontade das plataformas, esse é um desafio que teremos de enfrentar nas eleições de 2022. Até o momento, podemos festejar, ainda que com cautela, a grande derrota da censura e daqueles que tentaram ressuscitá-la em pleno século XXI. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cala a boca já morreu”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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