

Opinião
A guerra infinita e o fim da sociedade sob o capitalismo financeiro
Quando a competição é a única relação que existe entre as pessoas, a guerra passa a ser o ‘ponto de chegada’, o culminar do processo


Laura, enfermeira do popular Samu, contou que atendia a um chamado na capital paulista para socorrer um idoso que passava mal. Familiares do paciente a receberam.
A senhora do idoso ficou meio desesperada e gritou: “E agora, filho? Ela é negra”. O filho respondeu: “Tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas”.
O episódio de racismo escancarado me instigou a recorrer às manifestações recentes do filósofo italiano Franco Bifo Berardi e da analista sênior do Institute for New Economic Thinking, Lynn Parramore. Bifo Berardi e Lynn Parramore dedicam-se ao estudo das relações entre cultura, economia e formação de subjetividades no capitalismo que hoje assola a humanidade.
A dupla arriscou a pele ao se embrenhar nos labirintos das sociedades em que tentamos sobreviver. Escrevi labirintos porque os caminhos oferecidos pelas visões dominantes indicam direções que não levam a lugar algum. Servem apenas para a incompreensão das angústias que afligem hoje a vida humana.
Vou abrir a catadupa de transtornos com as considerações de Lynn Parramore. Ela informa que um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins desvendou condições angustiantes, como depressão grave, transtorno bipolar, esquizofrenia e transtorno obsessivo-compulsivo, entre as principais causas de incapacidade na sociedade americana.
“Mesmo antes da pandemia, mais de um quarto dos adultos americanos era acometido por transtorno mental. Em 2020, as taxas globais de depressão e ansiedade subiram mais de 25%, devastando especialmente mulheres e jovens. Médicos americanos declararam estado de emergência para as crises de saúde mental entre as crianças. E todo esse sofrimento mental alimenta doenças físicas, como derrame, doenças cardíacas, diabetes e artrite.”
Em entrevista recente, Berardi nos diz que a dimensão da empatia, da amizade, está a sofrer a destruição promovida pelo capitalismo financeiro. “Mas atenção, diz o filósofo, “não acredito numa vontade maléfica”. Para Bifo Berardi, os processos tecnológico e econômico geraram, simultaneamente, o capitalismo financeiro e a aniquilação digital da presença do outro. “Nós desaparecemos do campo da comunicação porque quanto mais comunicamos menos presentes estamos – física, erótica e socialmente falando – na esfera da comunicação.” O capitalismo financeiro, continua Berardi, assenta no fim da amizade. “A tecnologia digital é o substituto da amizade física, erótica e social através do Facebook, que representa a permanente virtualização da amizade. Agora diz-se que é preciso ‘consertar o Facebook’. O problema não está em ‘consertar’ o Facebook, mas sim em ‘consertarmo-nos’ a nós. Precisamos de regressar a algo que o Facebook apagou.”
No espaço social constituído sob as ordens do capitalismo financeiro, existem apenas indivíduos, empresas e países competindo e lutando pelo lucro. Assim, foi proclamado o fim da sociedade e o início de uma guerra infinita. A competição é a dimensão econômica da guerra. Quando a competição é a única relação que existe entre as pessoas, a guerra passa a ser o “ponto de chegada”, o culminar do processo. Berardi desconfia que, em breve, “acabaremos por assistir a algo que está para além da nossa imaginação…”
Para o filósofo, a solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. “A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos.” E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa a derrocada do ethos abrigado na alma do capitalismo financeiro.
Berardi garante que não há pensamento crítico sem amizade. Para ele, o pensamento crítico só é possível mediante uma relação lenta, paciente e afetuosa com a ciência e com as palavras.
“O pensamento crítico só é possível quando conseguimos ler um texto duas vezes e repensar o que lemos para podermos distinguir entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Quando o processo de comunicação se torna vertiginoso, assente em multicamadas e extremamente agressivo, deixamos de ter tempo material para pensarmos de forma emocional e racional. Ou seja, o pensamento crítico morreu! É algo que não existe nos dias de hoje, salvo em algumas áreas minoritárias, onde as pessoas podem se dar ao luxo de ter tempo e de pensar.”
Diz bem Lynn Parramore: a sensação de precariedade nunca desaparece. Em vez disso, coletivamente, compartilhando os riscos da vida, estamos cada vez mais sobrecarregados com os pesados fardos de existir em um mundo extremamente complexo. Somos indivíduos solitários, lutando para permanecer à tona, não importa qual seja a nossa situação. A maioria de nós é forçada a lutar em uma luta implacável e competitiva por recompensas: jogos vorazes, jogos de status, jogos de poder. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Transtornos contemporâneos”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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