Economia
Caso de corrupção que envolve a Vale na República da Guiné volta à tona
A mineradora ainda não recuperou os 2,5 bilhões de dólares perdidos no negócio e corre o risco de virar alvo da justiça norte-americana


Um negócio aparentemente vantajoso na República da Guiné, cobiçado pelas gigantes do setor e fechado 12 anos atrás, tornou-se um tormento constante, infindável, para a Vale, maior empresa privada brasileira. A representação de um acionista minoritário da companhia, Caio Tambeiro de Castro, enviada à Security Exchange Comission, órgão regulador do mercado de capitais nos Estados Unidos, reivindica a punição da mineradora e a reparação das perdas causadas aos investidores em consequência da corrupção que teria sido cometida pela companhia a partir de 2010, na tentativa de obter direitos de exploração da mina de ferro de Simandou, considerada a Carajás da África. Caso prospere, a ação de Castro, representado pelo escritório Bastos Silva Advogados Associados, poderá resultar em multas pesadas, entre outras sanções.
Não está descartada, inclusive, a possibilidade de o processo ganhar maior envergadura se o Departamento de Justiça dos EUA decidir entrar no caso. Essa perspectiva ampliou-se no mês passado com a revelação de um novo documento, que é explosivo tanto por aparentemente confirmar que a Vale sabia da existência de corrupção no negócio feito entre a sua futura sócia em uma joint venture, a empresa BSGR, do condenado empresário israelense Benjamin Steinmetz, e o governo da Guiné quanto por revelar, com um dia de antecedência, a informação sigilosa do FBI de que o birô de investigação iria realizar, no dia seguinte ao do encontro, a prisão do lobista francês Frédéric Cilins.
O documento inédito, anexado em fevereiro por Steinmetz aos autos da ação de bloqueio dos seus bens que corre em Londres, é a transcrição das anotações realizadas pelo advogado da Vale, Jonathan Kelly, do escritório norte-americano Clearly Gottlieb, Steen e Hamilton, de uma reunião realizada em Paris, em 12 de abril de 2013. O encontro ocorreu no escritório da DLA Piper, com a participação de Jeffrey Lewis, do mesmo escritório de Kelly e advogado da Vale em Nova York, Clóvis Torres, atual presidente de Furnas, diretor-jurídico da Vale na gestão Murilo Ferreira, Scott Horton, da DLA Piper, advogado do governo da Guiné e de George Soros, Michael Ostroff, seu colega de empresa, e Steven Fox, ex-agente da CIA e funcionário da Veracity Worldwide, empresa estadunidense de investigação contratada pela DLA Piper.
Condé (dir.) suspendeu a concessão de parte da mina de Simandou leiloada por Conté – Imagem: African Development Bank e Seyllou Diallo/AFP
Na representação protocolada na SEC, Castro descreve “fatos que justificam investigações adicionais acerca da conduta de executivos da Vale em transações comerciais internacionais que, ao que tudo indica, violaram normas do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e de regulação do mercado de capitais norte-americano”. A Vale é emissora de recibos de depósitos de ações, ou American Depositary Receipts (ADRs), negociados na Bolsa de Nova York, e decidiu fornecer voluntariamente informações contábeis e financeiras de modo sistemático às autoridades reguladoras dos EUA, o que criou a possibilidade de a empresa ser acionada a partir da Justiça daquele país.
Steinmetz, ex-sócio, foi condenado a indenizar a Vale, mas a briga continua – Imagem: Fabrice Coffrini/AFP
A história começa em 2010 com a constituição, mencionada acima, da joint venture entre a Vale e a BSG Resources, de Steinmetz. A associação visava explorar os direitos de mineração da mina de ferro de Simandou, outorgados à BSGR, em 2008, pela República da Guiné, negócio que se mostrou “absolutamente ruinoso para a Vale”, descreve a representação. A companhia, relata a ação apresentada à SEC, pagou à vista 500 milhões de dólares pela aquisição de participação de 50,1% nos direitos de mineração, que “logo se frustrou por completo por força da cassação da concessão detida pela BSGR sobre a mina de Simandou”. Essa revogação foi consequência de uma investigação do governo guineense, iniciada em 2011, que apurou que a outorga desses direitos havia sido obtida “mediante atos de corrupção e tráfico de influência de oficiais públicos guineenses, e que a BSGR, ao que consta, havia pagado milhões de dólares a uma das quatro esposas do presidente Lansana Conté, Mamadie Touré, para influir na outorga dos direitos minerários”. Segundo a ação protocolada na SEC, “há provas irrespondíveis, já tornadas públicas, de que a diretoria e os membros do Conselho de Administração da Vale, em 2010, quando da celebração da joint venture, tinham plena ciência e convicção de que a outorga dos direitos minerários sobre Simandou à BSGR havia sido obtida mediante atos de corrupção e tráfico de influência de oficiais públicos guineenses e, mesmo assim, quiseram prosseguir com o negócio”.
ESPECIALISTAS DIZEM QUE É DE SE ESPERAR UMA INVESTIGAÇÃO PARA APURAR O VAZAMENTO DE INFORMAÇÃO SIGILOSA DO FBI
Mais que isso, diz a representação, há provas de que executivos da Vale deliberadamente manipularam o relatório de diligência (due diligence) da empresa de auditoria e consultoria Ernst & Young realizada antes da celebração da joint venture, com o propósito de excluir red flags ou alertas que apontavam riscos relativos à prática de atos de corrupção por parte da BSGR, no que diz respeito à concessão dos direitos minerários sobre Simandou. “Nas demonstrações financeiras publicadas pela Vale”, sublinham os advogados do acionista minoritário, “nunca houve a indicação dos riscos de violação a disposições do FCPA envolvidos na celebração da joint venture com a BSGR”.
Em outubro de 2011, o governo da Guiné informa à Vale e à BSGR que não poderão exportar o minério de ferro de Simandou e determina a interrupção das operações, devido a suspeitas de que os direitos de mineração foram obtidos mediante corrupção
As evidências apresentadas à SEC foram obtidas, segundo a representação, a partir de processos judiciais e arbitrais que envolvem a Vale, a BSGR e a Rio Tinto, anterior detentora dos direitos de mineração de Simandou, além de denúncias apresentadas por Steinmetz a autoridades brasileiras, que incluem gravações de depoimentos de executivos da Vale obtidos em uma investigação privada conduzida pela empresa de inteligência israelense Black Cube. Investigadores dessa empresa, fundada por ex-agentes do serviço secreto israelense, realizaram entrevistas, fazendo-se passar por empresários, com administradores da Vale envolvidos nos contratos celebrados com a BSGR e nas relações com o governo da Guiné. As transcrições das conversas entre os agentes da Black Cube e os executivos foram admitidas como provas pela Corte de Nova York em disputa judicial entre a companhia e Steinmetz.
A Vale omitiu informações relevantes e divulgou informações falsas aos investidores
Conforme antecipou a informação secreta do FBI vazada na reunião realizada em Paris, o lobista Frédéric Cilins foi preso em viagem aos EUA, em 2014, para encontrar-se com Mamadie Touré, residente na Flórida desde a vitória de Alpha Condé, e pedir-lhe a destruição de provas de pagamento de propina do governo da Guiné para a BSGR e Steinmetz. O pedido foi gravado e Cilins foi condenado a dois anos de prisão nos EUA, fato amplamente noticiado pela imprensa mundial.
O vazamento da informação secreta do FBI revela-se ainda mais estarrecedor diante do comportamento de Scott Horton, advogado do empresário George Soros e do governo da Guiné, um dos participantes do encontro realizado em Paris. “Scott Norton alardeou a prisão de Cilins como se fosse obra sua. Às 14h19 do dia 16 de abril de 2014, enviou um e-mail com o título Update (atualização, em português), para Brian Heller, um dos mais reputados advogados criminais do Canadá. No corpo do e-mail, a reprodução de uma notícia publicada no site do jornal inglês The Guardian. No título lia-se, em inglês, “FBI prende agente por encobrir corrupção em batalha judicial sobre montanha de 10 bilhões de dólares”, relata o jornalista André Guilherme Delgado Vieira, no livro intitulado O Mapa da Corrupção – A Guerra dos Conglomerados Globais de Mineração pela Conquista da Carajás Africana. “Com o e-mail”, prossegue Vieira, “Scott Horton não só espalhou a notícia como pareceu cobrar algum crédito pela própria prisão de Cilins. ‘Esta é a minha investigação e do time do FBI. Muito orgulhoso deles’”, escreveu Horton sobre o corpo da reprodução da notícia do Guardian.
A Vale é reincidente em omissões e informações inadequadas, mostra também a comunicação aos investidores de que as barragens de Brumadinho eram estáveis, mas seu rompimento causou desastre de grande magnitude
O histórico de iniciativas do Departamento de Justiça dos EUA indica maior apetite dos procuradores por casos com denúncias ainda não divulgadas pela mídia, devido à maior probabilidade de produção de provas. Conhecedores da legislação e da prática das autoridades estadunidenses os procuradores acreditam que é de se esperar uma investigação para apurar responsabilidades ligadas ao vazamento da informação sigilosa do FBI. No mesmo mês da prisão de Cilins, o governo guineense revogou os direitos de mineração da BSGR em Simandou, com base na acusação de que teriam sido supostamente obtidos por meio de corrupção e tráfico de influência. Pouco depois, a Vale iniciou, contra a sua sócia BSGR, uma ação de arbitragem, na London Court of International Arbitration, na Inglaterra, com pedido de ressarcimento de todos os investimentos realizados na parceria malograda.
O Securities Exchange Act exige que as informações prestadas por uma empresa reflitam de forma precisa a situação dos seus ativos
A Vale venceu a disputa e o tribunal arbitral condenou a BSGR a pagar à empresa brasileira uma indenização por todos os investimentos realizados e perdidos, de cerca de 2,5 bilhões de dólares. Esse é o valor, cabe ressaltar, da perda da companhia e dos acionistas decorrente do fracasso do negócio, com redução proporcional da receita tributária do País. A Vale luta para receber a indenização pleiteada para ressarcimento dessa perda, e Steinmetz se esforça para evitar o desembolso.
Torres, ex-diretor da Vale, diz que as investigações inocentaram a empresa. Horton esteve na reunião em que teria vazado a ação do FBI – Imagem: L.S. Beowulf/Pen América e Redes sociais
A mineradora brasileira sempre alegou que jamais teria feito a joint venture com a BSGR se soubesse ou suspeitasse que a concessão dos direitos de mineração de Simandou em favor da sócia israelense teria origem ilícita, com atos de corrupção e tráfico de influência. O caso na Guiné sofreu, conforme registrado acima, reviravolta em fevereiro, favorável à BSGR e a Benjamin Steinmetz, não no sentido de inocentá-lo de qualquer corrupção, mas no rumo de evidenciar o pleno conhecimento da Vale de que o empresário havia oferecido propina para fechar o negócio com o governo do país africano. Novas informações provariam que a companhia sabia que Steinmetz havia corrompido o governo da Guiné para comprar a mina de Simandou, mas, apesar disso, teria feito de tudo para fechar o negócio como se não tivesse conhecimento desse aspecto, argumentam os defensores do empresário. O documento que registra as declarações durante a reunião realizada em Paris, acima mencionada, é a peça central que poderia mudar o patamar do caso.
Ex-diretor-jurídico da Vale, Clovis Torres, em resposta por escrito à revista, garante que a mineradora jamais fez qualquer acordo com o governo da Guiné para expulsar a BSGR da joint venture, tanto que somente ingressou com o procedimento arbitral contra a empresa de Steinmetz logo após a conclusão das investigações do comitê técnico do governo da Guiné que o levaram a revogar os direitos de mineração em abril de 2014. Segundo Torres, a conclusão das investigações desse comitê foi no sentido de que a empresa brasileira não sabia de qualquer prática de corrupção por parte do sócio, ocorrida anos antes da formação da parceria.
Quanto ao propalado acerto entre os advogados da Vale e os representantes da República da Guiné, para que as informações relativas à investigação do FBI não fossem compartilhadas com a administração da companhia e com seus acionistas, Torres afirmou o seguinte: “As informações preliminares de uma investigação ainda em curso pelo governo da Guiné, que foram comentadas na reunião de abril de 2013 pelos advogados daquele governo, eram confidenciais, pois ainda poderiam ou deveriam ser objeto de comprovação e também de compartilhamento com outras autoridades governamentais, inclusive o FBI, que soubemos naquela oportunidade também estar fazendo investigações concomitantes, com que somente houve compartilhamento interno na Vale com quem de direito, naturalmente respeitando-se a confidencialidade de uma investigação sigilosa em curso”. É importante lembrar, sublinha Torres, que “dois dias após aquela reunião, um suposto emissário de Benjamin Steinmetz foi preso em flagrante pelo FBI, no aeroporto de Miami, por obstrução de Justiça, quando tentava negociar com a quarta esposa do ex-presidente da Guiné Lansana Conté a destruição de provas da relação dela com a BSGR”.
O ex-diretor-jurídico chama atenção para a ação de arbitragem vencida pela Vale, que ordenou que a BSGR indenizasse a antiga parceira em 2,2 bilhões de dólares, conforme sentença transitada em julgado. “Eu não cometi obstrução de Justiça e a confidencialidade das informações preliminares que recebi na reunião de abril de 2013 foi preservada para não atrapalhar as apurações em curso e evitar novas investidas como a que culminou na prisão do senhor Frédéric Cilins pelo FBI, indivíduo que tentava sabotar as investigações tentando comprar testemunhas.”
HÁ PROVAS DE QUE EXECUTIVOS DA VALE DELIBERADAMENTE MANIPULARAM O RELATÓRIO DE DILIGÊNCIA DA ERNST & YOUNG
Convidada a se manifestar sobre o ingresso na SEC da representação de um acionista minoritário com denúncia de várias irregularidades que teriam sido cometidas por diretores da empresa nas negociações fracassadas para aquisição da mina de Simandou e ainda se deixou de publicar fato relevante sobre o tema, a mineradora brasileira respondeu que “não recebeu qualquer comunicação da SEC sobre o assunto mencionado” e que “não foram identificadas irregularidades por parte de ex-diretores na aquisição dos direitos de exploração dos blocos 1 e 2 de Simandou, na Guiné”. A empresa disse também que “os fatos relevantes foram devidamente publicados quando cabíveis” e reclamou de “factoides frequentemente criados pelo Sr. Beny Steinmetz, numa tentativa de favorecer sua narrativa fantasiosa e esquivar-se de suas obrigações de indenizar a Vale”.
A mina de Simandou é um recurso natural excepcional que continuará a polarizar a disputa entre as maiores mineradoras de ferro do mundo. Estima-se que os dois principais depósitos, Pic de Fon e Ouéléba, possuam mais de 2,4 bilhões de toneladas de minério de ferro. Em 1997, o sítio de mineração da cordilheira de Simandou foi dividido em quatro blocos de exploração pelo governo da Guiné. Em 2006, a australiana Rio Tinto recebeu o direito de explorar os quatro blocos de Simandou pelo prazo de 25 anos. Dois anos mais tarde, o governo da Guiné revogou parcialmente a concessão da Rio Tinto em relação aos blocos 1 e 2. Nesse momento, começou uma disputa entre diversas gigantes internacionais para a obtenção desses direitos. Em 2008, a BSGR venceu a concorrência e recebeu do governo guineense a concessão antes pertencente à Rio Tinto. Em 2010, a Vale e a BSGR celebraram uma joint venture para exploração conjunta da concessão dos blocos 1 e 2. A Vale comprometeu-se a pagar 2,5 bilhões de dólares ao grupo israelense para obter participação indireta de 50,1% em ambos os blocos. Desse total, 500 milhões foram pagos à vista. Em 2011, Alpha Condé assumiu a Presidência e iniciou um processo de revogação dos direitos de mineração da BSGR com base na acusação de que a concessão desses direitos teria sido obtida mediante corrupção de agentes públicos.
A SEC norte-americana não costuma ser complacente como a CVM – Imagem: iStockphoto
Três anos depois, o governo revogou os direitos da BSGR, que teria repassado milhões de dólares a Mamadie Touré, a quarta esposa do presidente Lansana Conté, para que ela influísse na concessão dos direitos minerários em seu favor. A Rio Tinto ajuizou nos Estados Unidos uma ação cível contra a Vale e a BSGR, sob a alegação de que teriam ocorrido violações ao U.S. Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act, a lei norte-americana de combate às organizações criminosas, na qual pleiteava o reconhecimento de uma conspiração entre a BSGR e a Vale para corromper oficiais da Guiné, promover a revogação dos direitos de exploração da Rio Tinto em Simandou e obtê-los para si. No ano passado, Steinmetz foi condenado a cinco anos de prisão por uma corte suíça, em virtude da prática de atos de corrupção e tráfico de influência na obtenção dos direitos minerários sobre Simandou.
O Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro instaurou inquérito civil para investigar a prática de crimes de mercado de capitais por parte dos administradores da Vale, em razão da omissão de informações sobre os riscos a envolver violação das disposições do FCPA no que diz respeito à joint venture com a BSGR para exploração de Simandou. A representação do minoritário na SEC abre, por sua vez, um novo capítulo na disputa interminável e prolonga a dor de cabeça da mineradora brasileira. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mina sem fundo”
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