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Bolsonaro finge se opor, mas os filhos atuam para legalizar os jogos de azar

Em 2020, o senador Flávio Bolsonaro viajou para os EUA, na companhia de Gilson Machado, para conversar com o diretor de operações da Las Vegas Sands (LVS)

Bolsonaro finge se opor, mas os filhos atuam para legalizar os jogos de azar
Bolsonaro finge se opor, mas os filhos atuam para legalizar os jogos de azar
Em Vegas. O ministro Gilson Machado (à esq.) e o senador Flávio Bolsonaro (à dir.) conversaram com empresários dos EUA - Imagem: Redes sociais e iStockphoto
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Sessenta e quatro milhões de reais foi o total movimentado por um grupo de operadores do jogo do bicho com atuação em municípios goianos e mineiros. Investigado desde 2019 pela Operação Zerando a Banca, o esquema levou à prisão do chefe e de oito integrantes da quadrilha, descoberta pela Delegacia Estadual de Repressão às Organizações Criminosas de Goiás.

O grupo de Rio Verde, no sudoeste do estado, tinha braços em ao menos 11 cidades, contava com uma estrutura de mais de cem máquinas de jogos e usava dois escritórios para esconder a origem ilícita da fortuna amealhada com as apostas. Na segunda-feira 14, a Polícia Civil concluiu o inquérito e indiciou 16 suspeitos, além de pedir à Justiça o bloqueio de 20 milhões de reais em bens. O delegado responsável pela operação alerta: o jogo é a porta de entrada de uma série de outros crimes, como lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e corrupção. A pena, no caso dos bicheiros goianos, pode chegar a 18 anos de reclusão.

Naquela mesma semana, chegava ao Senado o Projeto de Lei 442/91, que legaliza os jogos de azar no Brasil. O texto foi aprovado por 246 votos favoráveis e 202 contrários na Câmara dos Deputados, com apoio maciço do Centrão, incluindo o próprio presidente da Casa, Arthur Lira. Nos bastidores, houve intensa movimentação de Ciro Nogueira, ministro-chefe da Casa Civil, pela aprovação da proposta. Apenas o PT, o PSOL, o PSC, o Patriota e o Republicanos orientaram as respectivas bancadas a votar contra. Relatado pelo deputado Felipe Carreras, do PSB, pode liberar mais de 60 cassinos, 5,9 mil bingos e videobingos, corrida de cavalos e regulamentar a atuação de 305 bicheiros, indicam projeções do Movimento Brasil Sem Azar e da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, a Anfip. Seriam autorizados até mesmo cassinos turísticos, em localidades que detenham o título de patrimônio natural da humanidade.

Para cada dólar arrecadado com jogos de azar, perdem-se três em custos sociais, revela pesquisa

Se na Câmara o resultado foi apertado, no Senado a pauta deve tramitar com ainda mais dificuldade, apesar do intenso ­lobby feito por grandes conglomerados de Las Vegas e de Atlantic City, nos EUA, e de Portugal. A resistência à legalização dos jogos de azar deve unir novamente a oposição, parlamentares ligados a movimentos anticorrupção e a bancada evangélica. Além disso, senadores acreditam que parte do Centrão também tende a votar contra, incluindo o PP de Ciro Nogueira.

“Como o projeto é polêmico, não conseguimos falar nem em unanimidade de blocos ou bancadas, mas sou favorável à legalização. Para você ter uma noção, dos 34 países que formam a OCDE, grupo das nações mais desenvolvidas do mundo, apenas a Islândia não permite. No Mercosul, a proibição vigora apenas no Brasil”, argumenta o senador Coronel Ângelo, do PSD, relator de outras propostas semelhantes. Já o colega Eduardo Girão, do Podemos, é radicalmente contra a liberação dos jogos de azar. “No momento em que os brasileiros passam fome, a inflação está no teto, esse projeto só vai beneficiar alguns magnatas e gerar ­custos sociais para o Brasil, além de enfraquecer o cerco ao combate à corrupção”, diz o senador, municiado de manifestações contrárias de algumas das principais entidades religiosas do País, como a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Federação Espírita Brasileira (FEB). “Nunca vi uma sinergia tão grande entre essas três instituições contra um projeto.”

A CartaCapital, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, esclareceu que ainda está sendo feita uma avaliação para definir o percurso do projeto pelas comissões, e assegura que o projeto vai “seguir os trâmites normais da Casa, sempre pautada por uma discussão ampla”. Mas o que levou um projeto apresentado há 30 anos avançar tão rapidamente agora? A resposta está no ambiente político favorável que os conglomerados da jogatina encontraram no Brasil. Desde 2018, lobistas intensificaram a pressão sobre parlamentares, custeando, inclusive, viagens de deputados ao exterior para conhecer cassinos e conversar com empresários do ramo.

Crime. Em Goiás, apenas um grupo de bicheiros movimentou 64 milhões de reais. De norte a sul do País, a polícia não dá conta de combater as máquinas caça-níqueis – Imagem: Polícia Civil/GOVGO

O regime de urgência do projeto foi aprovado na Câmara em dezembro, no apagar das luzes do ano, e a votação em plenário ocorreu pouco antes do Carnaval. Lira é um entusiasta da proposta e Jair Bolsonaro finge se opor, no momento, apenas para não desagradar à base evangélica. Enquanto o ex-capitão esconde o jogo, seus filhos atuam nos bastidores. Em 2020, o senador Flávio Bolsonaro viajou para os EUA, na companhia do então presidente da Embratur e hoje ministro do Turismo, Gilson Machado, para conversar com Rob Goldstein, diretor de operações da Las Vegas Sands (LVS), empresa criada pelo magnata dos cassinos Sheldon Adelson. Falecido em janeiro de 2021, ele dizia ter o sonho de abrir uma banca de apostas no Rio de Janeiro. O bilionário, convém lembrar, era um apoiador de Donald Trump e financiou campanhas do Partido Republicano.

“Recém-chegados a Las Vegas, nos reunimos com um grupo de investidores estrangeiros especialistas em resorts integrados. Ouvimos do CEO e presidente do grupo, Rob Goldstein, que já foram procurados por vários países, mas o interesse número 1 é no Brasil”, postou o filho Zero Um. A viagem causou rebuliço na CPI da Covid, depois que se descobriu a participação de Danilo Trento, diretor da Precisa Medicamentos, na comitiva. A empresa intermediou a compra da vacina Covaxin entre o Ministério da Saúde e o laboratório indiano Bharat Biotech, mas o contrato foi cancelado devido a irregularidades. No mês seguinte à viagem, Flávio recebeu 6,5 mil reais do Senado, em ressarcimento das passagens áreas.

“Por que os bicheiros iriam se regularizar, se hoje lucram sem pagar impostos?”, indaga Vilson Romero, presidente da Anfip

A Comissão de Turismo na Câmara também viajou oficialmente para centros de referência dos jogos de azar pelo mundo afora. Deputados visitaram EUA, Inglaterra, Portugal e Macau, região autônoma da China, segundo consta no Portal da Transparência da Casa Legislativa. Os defensores do projeto argumentam que, mesmo na ilegalidade, os jogos de azar movimentam 18,9 bilhões de reais por ano, dos quais 12 bilhões circulam apenas no jogo do bicho, com 350 mil postos de venda espalhados pelo País, segundo estudo desenvolvido pelo Boletim de Notícias Lotéricas. Enquanto o crime organizado enriquece, o Estado deixa de cobrar impostos sobre a jogatina. Além disso, estima-se que as casas de apostas têm potencial para movimentar até 1% do PIB, cerca de 74 bilhões de ­reais por ano, e gerar mais de 200 mil empregos diretos ou indiretos.

Ricardo Gazel, doutor em Economia pela Universidade de Illinois e ex-funcionário do Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, contesta, porém, a previsão da turma. Em um cenário otimista, com alíquota de 30% sobre as receitas, o potencial de arrecadação seria de apenas 1,3 bilhão de reais. Os parlamentares também desconsideram os gastos que o governo teria para montar uma estrutura de fiscalização e controle. Além disso, os impostos que incidiriam sobre os jogos são baixos. O texto prevê uma contribuição fixa de 17%, a “Cide Jogos”. Haveria, ainda, uma cobrança de 20% de Imposto de Renda sobre os prêmios acima de 10 mil reais.

Jeitinho. Após a proibição dos bingos, multiplicaram-se as versões eletrônicas, com sorteios transmitidos em bares – Imagem: Polícia Civil/GOVRS

“Só que essa arrecadação canibaliza outras fontes de receita. O dinheiro que seria gasto em compras com alimentação, bebidas e vestuário, sobre os quais a taxação é bem maior, passará a ser gasto em jogos de azar, com uma tributação camarada”, observa Gazel. “No fim, a arrecadação total do Estado pode diminuir, em vez de aumentar.”

Outro ponto nebuloso é a fiscalização. “Atualmente, temos 7 mil fiscais para monitorar 18 milhões de contribuintes. Se hoje já não temos condições de fiscalizar o contrabando, a lavagem de dinheiro e a corrupção associadas à máfia dos jogos, como vamos ampliar esse espectro?”, indaga Vilson Romero, presidente da Anfip. “Além disso, qual bicheiro vai querer se regulamentar e passar a pagar imposto, se hoje não precisa disso?”

O movimento Brasil Sem Azar acrescenta, ainda, que 86% dos visitantes de Las Vegas em 2019 eram norte-americanos e 14% de outros países – e, desse total, apenas 4% viajaram para lá com a finalidade de jogar. Estudo feito pelo economista e cientista político Earl L. Grinols, professor da Baylor University, mostra que cada dólar arrecadado com jogos de azar gera um custo de 3 dólares ao Estado, para amparar famílias desestruturadas e custear o tratamento do vício em jogos, que, segundo projeções do Brasil Sem Azar, pode acometer 100 mil brasileiros. “Precisamos ter em mente que o lucro será privado e o custo será social. Trabalhamos forte na Câmara, mostrando esses dados para 442 deputados, e agora faremos o mesmo no Senado. Esperamos que a análise do tema nessa Casa seja mais técnica”, diz Roberto Lassere, presidente do movimento. A Federação Nacional dos Policiais Federais, a Associação Nacional do Auditores Fiscais e o Conselho de Controle das Atividades Financeira já se posicionaram em outros momentos contra a legalização dos jogos de azar. Consultada, a Procuradoria-Geral da República afirmou que aguarda a tramitação da proposta no Congresso para se manifestar sobre o tema. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Aposta arriscada”

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