

Opinião
Estamos na era da guerra de polícia ou de exceção
O conflito da Ucrânia traz todos os elementos dessa nova modalidade


O conflito entre Rússia e Ucrânia é muito mais complexo do que tem sido apresentado pelas máquinas de comunicação de cada um dos lados, merecendo ser observado sem interpretações apressadas e, sobretudo, sob o ponto de vista do Direito e das Relações Internacionais. Temos nos dias de hoje uma governabilidade global, oriunda da estruturação de um poder unilateral no mundo, exercido pelo que podemos chamar de império norte-americano. Não se trata de um simples imperialismo, pois imperialismo implica domínio econômico e político de países fracos por potências. O império é a pretensão de instaurar uma civilização, de estabelecer uma nova forma de vida para o mundo.
Pode-se afirmar que, enquanto China e Rússia são imperialistas porque pretendem manter sob seu controle países que estão na sua zona de influência, os Estados Unidos enxergam como sua zona de influência o restante do mundo, ou seja, eles buscam determinar uma forma de vida política, cultural e econômica para o planeta. Essa governabilidade global, evidentemente, atende aos interesses da nova forma de capitalismo que rege os dias atuais, dominada pelo capital financeiro, tecnológico e militar, e que se manifesta pelo exercício próprio de qualquer governabilidade – o poder de polícia.
Neste novo contexto, as Forças Armadas dos países ricos deixaram de ser forças de ocupação ou de defesa territorial e passaram a ser forças de polícia, que realizam intervenções militares em outros países sob o pretexto da garantia da segurança. O primeiro ensaio que tivemos deste novo tipo de intervenção foi no início dos anos 1990, no Panamá, quando os EUA invadiram o país para capturar o ex-presidente Manuel Noriega, sob a alegação de que o antigo aliado estava envolvido com o tráfico de drogas. Mas foi a partir da guerra na antiga Iugoslávia que começa a consolidação dessa nova forma de ação militar, acentuando-se muito após a queda das Torres Gêmeas.
Estamos, então, na era do que podemos chamar de guerra de polícia ou de exceção, cujas características são, além da alegação de razões de segurança para sua realização, a suspensão das regras e princípios de Direito Internacional e o não reconhecimento de sua institucionalidade, ou seja, das determinações dos organismos multilaterais como a ONU. A invasão do Iraque pelas forças de coalizão lideradas pelos EUA, em 2003, ocorreu contra a deliberação do Conselho de Segurança da ONU. Além disso, em geral, essa nova modalidade de operação militar tem a pretensão de realizar ações cirúrgicas, atacando alvos militares e reduzindo ao máximo as mortes de civis, o que, como se sabe, varia muito de uma intervenção para outra. No caso das guerras de polícia empenhadas em prol de interesses dos EUA, há também a intenção de promover o regime change, ou seja, de mudar o regime político do país.
Outro elemento fundamental dessas guerras é o uso do aparato de mídia e de informação, da comunicação social, como arma ou máquina de guerra. Isso surge como uma resposta à Guerra do Vietnã, quando não houve por parte dos estrategistas militares e dos governos uma preocupação com o controle da mídia. Isso permitiu que chegasse à população pelos meios de comunicação um farto material, que influenciou a opinião pública e criou um movimento social contrário à guerra, o que acabou sendo uma das razões do recuo norte-americano naquele conflito.
O conflito da Ucrânia traz todos os elementos dessa nova modalidade de guerra. A Rússia ocupou a Ucrânia alegando fundamentalmente razões de segurança e o objetivo de uma desnazificação – o que também está relacionado à segurança, uma vez que o nazismo é tido como crime de lesa-humanidade. Embora a Ucrânia seja, de fato, um dos países com mais forte influência nazista na sua sociabilidade e no seu aparato de Estado, esse não é o motivo real da ação militar. Até porque, se fosse, Putin teria de começar a desnazificação pela própria Rússia e pelos nazistas que apoiam movimentos separatistas em favor da Rússia.
O motivo da ação russa é, provavelmente, o avanço da Otan sobre uma área de influência da Rússia, o que gera instabilidade. Importante destacar a dificuldade de análise em um contexto conturbado pela instrumentalização da informação de ambos os lados, no qual o acesso a informações independentes é muito limitado. De qualquer forma, ainda que a preocupação russa em face da situação que havia na Ucrânia – e que vem se deteriorando desde 2014 – seja legítima, não justifica a invasão de um país. Como qualquer nação, a Ucrânia tem direito à sua soberania e não pode estar sujeita a esse tipo de agressão.
A reação da Otan, da União Europeia e dos EUA ao estabelecerem sanções comerciais agressivas contra a Rússia é, porém, abusiva e trágica. Sanções comerciais e bloqueios são também atos de guerra, que podem levar sacrifício, dor e humilhação a uma quantidade imensa de civis. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Guerras de exceção”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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