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Merkel errou ao ignorar os riscos nas relações com a Rússia de Putin?

A chanceler, dizem aliados, apostava na parceria comercial como forma de limitar os riscos de conflitos na Europa

Merkel errou ao ignorar os riscos nas relações com a Rússia de Putin?
Merkel errou ao ignorar os riscos nas relações com a Rússia de Putin?
O gás que nos une. Putin esteve à disposição de Merkel em várias ocasiões. Schroeder preside o gasoduto Nord Stream, fonte de controvérsia - Imagem: Bertrand Guay/AFP e Paul Zinken/DPA/AFP
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Depois que a guerra na Ucrânia fez o chanceler alemão, Olaf Scholz, dar uma meia-volta dramática sobre os credos de fé de seu país no pós-Guerra, a atenção passou a mudar para a sua antecessora, que conduziu a Alemanha por um caminho estratégico em direção à Rússia que se tornou um beco sem saída.

O conflito no Leste causou um abalo sísmico na Alemanha, onde Scholz deu meia-volta em uma posição restritiva sobre a exportação de armas, anunciou enormes aumentos nos gastos militares e prometeu libertar o país do gás russo. Desde então, todos os olhos estiveram sobre Gerhard Schröder, o ex-chanceler impenitente que em suas últimas semanas no poder apertou a mão de Vladimir Putin para ratificar o gasoduto Nord Stream sob o Mar Báltico. Semanas depois, Schröder passou tranquilamente pela porta giratória e tornou-se o presidente do Nord Stream. O consequente aumento da dependência alemã da energia russa, como admitem hoje políticos em Berlim, pode ter levado Putin a acreditar que a Alemanha estaria amarrada demais para apoiar sanções econômicas. Como um lobista pago da gigante de energia Gazprom, a motivação de Schröder é transparente: na sexta-feira 4, Scholz chamou seu colega de partido e ex-chefe para cortar os laços com as companhias estatais russas.

Está menos claro por que a inclinação de Schröder a expandir os laços econômicos com a Rússia foi amplamente continuada por sua sucessora, ­Angela Merkel, e se ela o fez puramente por passividade ou para sua vantagem política. Quando Merkel terminou seu mandato de 16 anos, em dezembro passado, os obituários políticos destacaram suas tratativas com Putin como pontos de elogio: seu apoio às sanções econômicas pela ocupação da Crimeia, assim como o esforço de resgate que ela iniciou para tratar o dissidente envenenado Alexei ­Navalny num hospital em Berlim, falavam sobre tudo menos ingenuidade em suas interações com o Kremlin.

A chanceler, dizem aliados, apostava na parceria comercial como forma de limitar os riscos de conflitos na Europa

Agora, pululam críticas mais fortes. “Há necessidade de uma avaliação sóbria dos erros de julgamento do governo alemão em seus negócios com a Rússia nos últimos 16 anos”, disse o político da CDU e ex-oficial do Bundeswehr ­Roderich Kiesewetter. “Para grande surpresa da Otan, em 2008 a França e a Alemanha bloquearam um Plano de Ação de Afiliação para a Geórgia, advertindo que a Rússia o interpretaria como uma ameaça existencial. Mas quatro meses depois, a Rússia invadiu a Geórgia de qualquer modo. Em 2014 e 2015, quando os Estados Unidos quiseram armar a Ucrânia diante da anexação da Crimeia pela Rússia, Merkel e o então presidente francês François Hollande se opuseram a essa estratégia, preferindo investir em esforços diplomáticos”, disse Kiesewetter ao Observer. “Mas à sombra desses aparentes sucessos diplomáticos a Rússia continuou reforçando sua ameaça militar.”

Há também novas questões sobre o apoio inabalável de Merkel ao projeto Nord Stream, cujo primeiro gasoduto ela inaugurou em cerimônia em 2011. “Com o Nord Stream, hoje está claro que a Alemanha foi simplesmente enganada pelo lado russo: esse sempre foi um projeto político, não econômico”, disse Kiesewetter. “A Alemanha nunca abordou a dimensão europeia e de segurança do projeto.”

No primeiro mandato de Merkel, uma certa ingenuidade em relação ao gasoduto até então podia ser explicada pelo acordo de compartilhamento de poder com o Partido Social Democrata, ainda moldado à imagem de Schröder, e primeiros-ministros de centro-esquerda com simpatias abertamente pró-Rússia nos estados do nordeste da Alemanha, especialmente ­Mecklenburg-Vorpommern.

Oposição interna. Navalny insufla – Imagem: Redes sociais

“No estado natal de Merkel, e em seu eleitorado, o Nord Stream sempre foi um empreendimento extremamente popular”, disse Claudia Muller, delegada verde da mesma região. “Quando se tratava da Rússia, Mecklenburg-Vorpommern efetivamente tinha sua própria diplomacia à sombra.” Mesmo depois de sua reeleição em 2009, Merkel apoiou a continuidade e a expansão de um gasoduto, insistindo durante anos que era um “projeto puramente econômico”, embora mais tarde tenha admitido que certos “fatores políticos” não podiam ser ignorados.

“O pragmatismo econômico ao lidar com a Rússia não era apenas uma característica do romantismo dos social-democratas”, disse Jana Puglierin, chefe do Conselho Europeu para Relações Exteriores, em Berlim. “Merkel também acreditava que através do comércio se poderia ligar a Rússia a um sistema multilateral, e assim a uma ordem baseada em regras. Mesmo depois de 2014-2015, quando os alarmes soaram, ela compartimentalizou o problema. Ela simplesmente não o transformou numa questão política.”

Pesquisa da Policy Network Analytics, rede de inteligência de dados sem fins lucrativos que conecta decisões políticas a investimentos econômicos estratégicos, sugere que a dimensão política do Nord Stream talvez fosse mais aparente para ela do que deixou perceber. Merkel foi criada no nordeste da Alemanha, onde conquistou um mandato direto de um eleitorado que cobre a ilha de Rugen, no Mar Báltico. No sistema político federalista, os parlamentares não precisam agir como amplificadores de suas próprias preocupações políticas, e o chanceler ainda menos.

Mas, no verão de 2009, o estado natal de Merkel despencou na agenda nacional: os estaleiros Wadan em Schwerin e Rostock pediram concordata. Com as eleições nacionais dali a apenas três meses, Merkel enfrentou uma perda humilhante de 2,7 mil empregos em seu território. Seis semanas antes da votação, o escritório de imprensa da chanceler anunciou uma novidade: “O resgate dos estaleiros Wadan está à vista”. Em uma reunião em Sochi, Merkel e o presidente russo, Dmitry Medvedev, tinham fechado um acordo pelo qual os estaleiros seriam comprados por Vitaly Yusufov, salvando a metade dos empregos na companhia. Até então, Yusufov, de 29 anos, tinha trabalhado como diretor do escritório em Moscou de uma certa companhia de gasoduto russa: a Nord Stream AG. Seu pai, Igor, serviu como ministro da Energia no primeiro mandato de ­Putin e, na época, coordenou as cooperações de energia da Rússia como enviado especial. “Houve considerável pressão política para que os Wardan fossem salvos, e é questionável se o acordo teria passado tão rapidamente sem isso”, disse Klaus-Peter Schmidt-Deguelle, assessor de comunicações que na época estava no conselho assessor da companhia.

Empresários russos salvaram empregos no estado natal de Merkel

Mesmo então, houve rumores de que o dono anterior insolvente do estaleiro, o investidor russo Andrei Burlakov, tinha sido um mero fantoche em uma trama de lavagem de dinheiro da máfia russa, denúncia também feita por um promotor que investigou atividades criminosas russas na Espanha (uma investigação criminal da lavagem foi interrompida pelo promotor estadual em ­Schwerin em 2012, devido à falta de cooperação do lado russo). “Se Burlakov era um fantoche, ele parou de fazer esse papel em algum momento, ou ainda estaria vivo”, disse Schmidt-Deguelle ao Observer. Em setembro de 2011, o investidor russo foi atingido por um pistoleiro num restaurante em Moscou.

Segundo o comunicado alemão sobre o encontro em Sochi, Merkel e Medvedev não só discutiram um acordo de resgate para os estaleiros Wardan, mas um possível investimento russo na montadora alemã em dificuldades Opel e na fabricante de microchips Infineon. Nenhum desses planos se materializou, para desgosto de Moscou. A mídia russa, entretanto, relatou que os dois líderes também discutiram uma “cooperação energética”.

Segundo a Nord Stream AG, o planejamento do segundo gasoduto foi implementado dois anos depois, embora suas origens exatas não tenham sido comunicadas abertamente.

Questionado pelo Observer por e-mail se a cooperação energética discutida em Sochi foi o gasoduto Nord Stream 2, e se as cooperações econômicas discutidas eram contingentes entre si, o gabinete de Merkel não quis responder, referindo-se, em vez disso, à única declaração pública que ela deu desde o início da guerra na Ucrânia. “Não há justificativa para essa infração evidente do direito internacional”, disse Merkel quatro dias após o início da invasão russa. “Esta guerra de agressão da Rússia marca um profundo ponto de inflexão na história da Europa, desde o fim da Guerra Fria.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Abraços de ursos”

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