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O Telegram prospera durante a invasão da Ucrânia

A plataforma, fundada por russos exilados, espera atrair mais usuários antes de abrir o capital na Bolsa

O Telegram prospera durante a invasão da Ucrânia
O Telegram prospera durante a invasão da Ucrânia
Falsa proteção. O sistema de criptografia do Telegram não é tão seguro quanto se pensa - Imagem: iStockphoto
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Nos dias seguintes à invasão de seu país por Vladimir Putin, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, usou seu canal no aplicativo Telegram para enviar uma mensagem de vídeo desafiadora do centro da capital, Kiev, na qual pedia à nação que se unisse e resistisse ao ataque russo. O serviço de mensagens semelhante ao WhatsApp, cofundado pelos irmãos bilionários russos exilados Pavel e Nikolai Durov, tornou-se uma arma central numa batalha de propaganda digital que acabará por aumentar seu uso e perfil de investidores antes de uma possível oferta de ações de 50 bilhões de dólares no mercado no próximo ano.

O presidente ucraniano de 44 anos, ex-ator de tevê e comediante que fez campanha pelo Telegram no período que antecedeu sua vitória nas eleições presidenciais de 2019, usou o serviço para refutar as alegações de que o exército havia sido instruído a depor armas, que a evacuação tinha sido ordenada – e para galvanizar a população provando que ele não sairia da capital.

O Telegram, que tem mais de 550 milhões de usuários mensais em todo o mundo, é o aplicativo de mensagens mais popular na Ucrânia. A criptografia muito elogiada do serviço e sua capacidade de disseminar mensagens para grupos de até 200 mil usuários – o limit­e­ no ­WhatsApp, de propriedade do Facebook, é de 256 – o fez ser chamado de “aplicativo preferido” dos terroristas.

O Telegram foi proibido na Rússia em 2018, depois que Pavel Durov se recusou a dar às autoridades acesso aos dados de seus usuários. A repressão, que incluiu o bloqueio de endereços IP, foi, porém, fácil de contornar e o serviço continuou a crescer. A Rússia cedeu e suspendeu a proibição em meados de 2020.

A plataforma, fundada por russos exilados, espera atrair mais usuários antes de abrir o capital na Bolsa

O aplicativo foi adotado como uma das principais fontes de notícias fora da mídia controlada pelo Estado, e na guerra ucraniana tornou-se uma tábua de salvação 24 horas para civis, jornalistas e até militares. Tornou-se a plataforma para grupos de protesto de todos os tipos, da Rebelião da Extinção a grupos antivacinação, dos manifestantes do Capitólio dos Estados Unidos a campanhas pró-democracia em países como Bielorrússia, Hong Kong e Irã.

Mas o papel do Telegram na disseminação de informações não verificadas alarmou Durov, de 37 anos, chamado de Mark Zuckerberg russo, depois que ele fundou a que ainda é de longe a rede social mais popular do país, a VKontakte (VK), em 2006.

Recentemente, ele disse que considerava fechar o serviço nos “países envolvidos” durante o conflito. “Não queremos que o Telegram seja usado como uma ferramenta que exacerba conflitos e incita o ódio étnico”, postou no domingo 6.

Horas depois, ele mudou de ideia, atendendo a pedidos em massa de usuários que diziam ser sua única fonte de informação. “Verifiquem e não acreditem nos dados que são publicados nos canais do Telegram durante este período difícil”, aconselhou Durov.

Jamie MacEwan, analista de mídia do serviço de pesquisa Enders, disse: “Este é mais um exemplo de que o Telegram está ligado a movimentos de resistência. Isso faz parte de sua reputação nos últimos anos, conforme ele cresceu. Está associado a ser um porto seguro”.

Bilionário. Durov, um dos fundadores – Imagem: G.Nitschke/Hubert Burda Media

Durov é conhecido por seu comportamento excêntrico ocasional – certa vez, ele jogou aviões de papel feitos de notas bancárias pelas janelas do escritório da VKontakte, causando brigas na rua abaixo, e ofereceu publicamente um emprego a Edward Snowden. Agora ele está numa missão para tornar seu segundo empreendimento tecnológico a história de sucesso que lhe foi arrancada na primeira vez.

Durante os protestos anti-Putin em 2012, Durov tornou-se muito popular por se recusar a fechar grupos que usavam o site de mídia social para organizar marchas. Dois anos depois, ele estava no lado receptor de um golpe de investidor hostil em que a VK foi apropriada pelo ­Grupo Mail.Ru, liderado pelo bilionário russo e aliado de Putin Alisher Usmanov. Em dezembro, o Kremlin reforçou seu controle sobre a empresa, quando a seguradora russa Sogaz, fundada pela gigante ­Gazprom, assumiu o controle da VK.

Durov vendeu e deixou o negócio, bem como o país, tornando-se cidadão de São Cristóvão e Névis, no Caribe, depois de resistir à pressão do Kremlin para divulgar os dados dos líderes dos protestos ucranianos.

Não causa surpresa que o Telegram, que ele lançou com seu irmão Nikolai em 2013 e está operacionalmente sediado em Dubai, seja construído com base em segurança e privacidade.

Em 2020, o Telegram foi obrigado a devolver 18,5 milhões de dólares a investidores por causa de uma operação malsucedida com criptomoedas

Durov, avesso a publicidade e que tende a se vestir todo de preto, gasta, no entanto, grande parte de sua energia criticando os padrões de segurança dos rivais, principalmente o líder mundial, WhatsApp. Nos últimos anos, ­especialistas em segurança questionaram as alegações de superioridade do ­Telegram, apontando que, ao contrário dos rivais, ele não oferece criptografia de ponta a ponta por padrão em todas as suas opções de mensagens. Moxie Marlinspike, criador do popular aplicativo de mensagens seguras Signal, foi ao ­Twitter para lembrar aos ucranianos que o ­Telegram não é tão criptografado quanto os usuários pensam, depois do que ele alegou ter sido uma “década de marketing e imprensa enganosos”.

A experiência de Durov na VK ­deixou-o com aversão a trazer investidores externos para financiar o Telegram. Com uma fortuna estimada em mais de 17 bilhões de dólares, ele conseguiu sustentá-lo durante a maior parte de sua vida sem apoio de fora. Mas a busca por formas alternativas de arrecadar os fundos necessários para impulsionar o crescimento levou-o a uma incursão desastrosa no mundo dos criptoativos. Em 2018, Durov embarcou em um plano para arrecadar bilhões por meio do lançamento de uma ­criptomoeda chamada grams, empreendimento que provocou uma investigação da SEC, a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA.

As pré-vendas antes da planejada oferta inicial de moedas, que teria financiado um sistema proposto de serviços de aplicativos Telegram Open Network (TON) e uma loja de bens digitais e físicos, atraiu uma resposta arrebatadora de um grupo seleto de investidores, levantando 1,7 bilhão de dólares. Mas, dois anos depois, o Telegram fechou a TON e concordou com um acordo de 18,5 milhões com a SEC, que argumentou que a grams ignorou as leis de financiamento dos EUA e ordenou que o dinheiro fosse devolvido aos investidores.

O revés na captação de recursos não desacelerou, porém, o crescimento: no início de 2021, o Telegram relatou o maior aumento de usuários em sua história: 25 milhões em 72 horas. Durov, que agora também é cidadão francês, creditou a corrida de novos telegrammers a um anúncio no WhatsApp esclarecendo sua política de privacidade relacionada ao compartilhamento de dados com o Facebook. Durov acrescentou, de forma bastante grandiosa: “Podemos estar testemunhando a maior migração digital da história da humanidade”.

Garoto propaganda. Zelensky se comunica pelo Telegram – Imagem: Sergei Supinsky/AFP

A política do WhatsApp não incluía o compartilhamento do conteúdo das mensagens, mas assustou muitos usuários, que desertaram para outras plataformas de qualquer maneira: Telegram e Signal foram os maiores beneficiários. “O aumento de downloads do Telegram é em parte impulsionado pela crescente ansiedade dos consumidores sobre o poder das maiores empresas de tecnologia e por preocupações com a privacidade”, diz o analista Xiaofeng Wang, da Forrester.

Alguns meses após esse aumento de usuários, o jornal de negócios russo ­Vedomosti informou que fontes não identificadas próximas à empresa alegaram que uma oferta pública inicial de 50 bilhões de dólares estava planejada para até o fim do próximo ano. Um IPO bem-sucedido consolidaria a ascensão do Telegram, que começou a avançar na proposta extremamente difícil de ganhar dinheiro com os usuários de serviços de mensagens.

Durov, que uma vez prometeu que o Telegram nunca exibiria anúncios, tenta monetizar a plataforma por meio de uma combinação de publicidade com “segurança de privacidade” e patrocínio de canais. “O momento do surgimento da conversa sobre um IPO é bastante revelador, chegando quase imediatamente após o boom inicial de 2021, quando seu potencial de usuários começou a explodir”, diz MacEwan, da Enders. “Acho que o ímpeto que eles têm agora, o grande peso dos usuários e o fato de estarem experimentando a publicidade em ‘segurança de privacidade’ os tornam um candidato atraente a uma IPO.”

Um porta-voz do Telegram confirmou que a empresa segue planos para uma oferta pública inicial e que alguns títulos pré-IPO foram vendidos com prazo de cinco anos, mas alertou que o cronograma não é certo. “Quanto aos planos de IPO, estes vão depender da situação econômica do momento”, disse.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A rede da guerra”

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