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Ele derrubou o Duce

Chega-nos a trágica aventura do fascismo no século passado, acompanhada por uma intervenção sobre o destino de quem derrubou Mussolini

Ele derrubou o Duce
Ele derrubou o Duce
A propaganda celebra o Duce a cavalo, mas a foto de sua libertação da fortaleza dos Apeninos registra a sua decadência física - Imagem: NYT e AP
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As vezes, a história real fornece enredos para a melhor literatura. No caso, refiro-me a uma trilogia intitulada simplesmente M. Seu autor, Antonio Scurati, pluripremiado na Itália, já teve suas obras, de ficção e não, publicadas em 40 países. O primeiro volume da trilogia, M – O Filho do Século, e o segundo, M – O Homem da Providência, foram lançados pela Editora Intrínseca, à espera de uma terceira obra, que dirá respeito à fase final do regime e à derrocada do fascismo. O protagonista do entrecho, narrado com absoluta precisão histórica, é um dos ditadores mais violentos e malignos do século passado, Benito Mussolini.

Assim o apresenta Scurati: “Sofria com insistentes problemas digestivos, que provocavam, além de dores lancinantes, gases, prisão de ventre, crises de vômito e um hálito pestilento”. Scurati, nascido em Nápoles, em 1969, é professor de ­Literatura Comparada na ­Universidade de Comunicação e Línguas de Milão e colunista do Corriere della Sera. A definição Homem da Providência é de pura inspiração eclesiástica: foi como Mussolini passou a ser chamado pela máxima hierarquia da Igreja Católica, depois da assinatura dos pactos de Latrão, destinados a tornar o Vaticano um Estado encravado na capital do país, Roma, e o catolicismo religião oficial a ser lecionada nas escolas.

Imagem: AP

Dois conspiradores do Grande Conselho, Grandi e Federzoni, refugiaram-se no Brasil

Ao cabo do seu longo domínio, a partir da Marcha sobre Roma, e na prática encerrado pela derrota na Segunda ­Guerra Mundial, foi derrubado pelos próprios companheiros de aventura, integrantes do chamado Grande Conselho do fascismo. O primeiro lance da conspiração urdida contra o líder traz o nome de ­Italo ­Balbo, cujo avião foi abatido pelo fogo amigo na Líbia, no céu de Tobruk, em 1941. ­Balbo era uma das figuras mais expressivas da tomada do poder por ­Mussolini e influenciou vários companheiros, convencidos dos erros palmares cometidos pelo ditador, prólogo da derrota inevitável. A reunião do Grande Conselho do fascismo foi realizada em agosto de 1943.

Dos conspiradores Mussolini quis vingar-se, mandou fuzilar também o genro Galeazzo Ciano, casado com a filha Edda, e seu chanceler. Uma miríade de desafetos ficou na prisão de San Vittore, em ­Milão, à espera das punições. Depois de derrubado, o poder foi entregue pelos conspiradores ao rei Vitor Emanuel III, e este nomeou o general Pietro Badoglio chefe do governo interino, enquanto ­Mussolini era aprisionado em uma fortaleza dos ­Apeninos. De lá, um comando organizado por Hitler libertou-o e permitiu que, em Milão, Mussolini conseguisse formar um governo de uma singular república italiana, sediada às margens do Lago de Como, na cidade de Salò, em meio à resistência da população e da guerrilha, que estava em plena atividade no norte da península. Como se sabe, foi capturado enquanto tentava fugir para a Suíça acompanhado da amante Claretta Petacci. Fuzilado pelos guerrilheiros comunistas, ­Mussolini foi exposto, juntamente com Claretta e outros nove figurões fascistas, pendurado de cabeça para baixo em um posto de gasolina de uma praça milanesa. Claretta era a derradeira de uma interminável lista de amantes, um número assombroso de mulheres de todas as extrações a revelar uma vitalidade sexual irreprimível.

“Fuzilado” por fogo amigo – Imagem: Leemage/AFP

Excelentes contribuições à descrição destes eventos são de autoria dos diretores de cinema Dino Risi e Bernardo ­Bertolucci, com suas obras-primas intituladas, respectivamente, A Marcha Sobre Roma e Novecento. Dois conspiradores, um deles decisivo, daquela reunião fatal do Grande Conselho, logo depois de entregar o poder ao rei, refugiaram-se, de início, em Lisboa e, depois, no Brasil. Um deles, Luigi Federzoni, com o falso nome de Carmine Maranzani, intelectual de qualidade, ficou por aqui algum tempo, mas acabou por voltar à Itália quando a repressão antifascista havia terminado, e morreu tranquilamente em sua cama.

O outro, Dino Grandi, fora realmente o deus ex machina da derrubada, autor da moção que acusava Mussolini.

Com a família, foi viver na quarta casa da Avenida Cidade Jardim, do lado esquerdo de quem vai para o Jockey Club. Fora estas quatro casas, nada havia naquele espaço. O prefeito Fábio Prado ainda não erguera o seu Palácio de Versalhes, que mais tarde se chamou Museu da Casa Brasileira, na esquina de uma modesta Rua Iguatemi forrada de piedosos paralelepípedos e destinada a enfrentar uma ponte de trânsito arriscado sobre um riacho a atravessá-la entre duas ruas de terra do Jardim Paulistano. Numa delas morava a família Carta. Muitos anos depois, a rua modesta foi substituída por uma avenida pretensamente digna da metrópole, a Faria Lima.

Dino Grandi sabia da história da prisão de meu pai nos tempos da República de Salò e logo procurou a família Carta para encontrar uma audiência atenta às suas aventuras. Lembro-me das visitas noturnas daquele que fora personagem central da fatídica derrubada de Mussolini. Vestia sobre o pijama uma surrada capa de chuva de cor incerta e, assim ajambrado, partia de chinelos pela Rua Iguatemi a caminho da casa dos Carta, onde seria possível também filar uma boia. Ao cabo oferecia um espetáculo deslumbrante aos olhos e ouvidos dos seus hóspedes, ao contar seus tempos de embaixador em Londres, a privar da companhia frequente de Winston Churchill, eventualmente à luz de uma lareira com um copo de uísque próximo.

A família Grandi ao completo – Imagem: Ullstein Bild/Getty Images

O primeiro-ministro inglês, aquele que prometia sangue, suor e lágrimas, alimentava simpatia pelo anticomunismo irredutível de Mussolini, o qual, por isso, parecia-lhe digno de alguma, ou bastante, consideração. Mas o ponto alto das evocações era a memória da reunião do Grande Conselho, e dos comportamentos de todas as figuras envolvidas, enquanto um pequeno avião esperava os conspiradores depois do encontro com o rei, para chegar a Lisboa, primeira etapa para ­Dino Grandi antes da parada final no Brasil.

Meu pai pintava por um talentoso ­hobby, os pincéis entregavam-se às suas mãos com notável tranquilidade, e aqui vai publicado um quadro que ele fez, plantado o cavalete às margens do pequeno jardim da casa dos Grandi, retratando o panorama que dali se via. O resto que se enxergava era exatamente quanto o quadro mostra. E ao lado da árvore está o primeiro esboço da Avenida Cidade Jardim, a caminho do Jockey Club. À extrema-direita, as casinholas que seriam demolidas pelo prefeito para oferecer espaço à sua obra suntuosa.

Dino Grandi tinha uma família simpática, mulher inteligente e espirituosa, e dois filhos, Simonetta e Franco, muito bem-educados, com os quais mantive uma amizade longeva. Simonetta, às vezes, dançava no alpendre da casa dos Carta, nos braços de Aldo Calvo, amigo de infância de minha mãe e cenarista de teatro. Mais tarde, colaboraria para equipar o teatro de Brasília recém-inaugurada. Eu, adolescente, tocava os discos naquilo que chamávamos vitrola. Simonetta,­ tempos depois, vinha frequentemente à nossa casa para jantar, e fez exposição de seus trabalhos, imagens fotográficas ousadamente retocadas, no Museu da Imagem e do Som.

A paisagem diante da casa dos Grandi. Encoberta a Avenida Cidade Jardim, passando aos pés da árvore. E, à direita, a ausência da Versalhes de Fábio Prado

O irmão, Franco, encontrei-o na casa de amigos brasileiros, por ocasião de uma passagem dele por São Paulo, e nos abraçamos com carinho. Estava para completar 70 anos e dissertava sobre as responsabilidades da idade. Havia se tornado um empresário bem-sucedido no ramo da suinocultura, praticada na região da Emilia ­Romagna, terra de sua origem familiar. Escreveu-me depois uma longa carta, para dizer das suas recordações do passado vivido no Brasil. Guardei-a como preciosa lembrança.

No meio de sua descrição da fuga, Grandi, com voz grave, carregada de tensão, referia-se aos sentimentos que o tomavam enquanto voava para Portugal. Lá pelas tantas, descreveu com especial embargo o momento em que do avião que o levava viu embaixo o lago Trasimeno, na fronteira entre Toscana e Úmbria. De vez em quando, em momentos tensos, a família Carta repetia a frase “E embaixo o Trasimeno”, em tom de falso desespero, a imitar o tormento do fugitivo. •


UMA LIÇÃO DE ANTIFASCISMO

O segundo volume da trilogia M concentra-se no período que vai de 1925 a 1932
Por Ana Paula Sousa

A saga histórica escrita pelo autor italiano Antonio Scurati vai virar uma série televisiva – Imagem: Greta Stella

Enquanto M – O Filho do Século é transformado em uma série televisiva, Antonio Scurati dedica-se a concluir a saga histórica protagonizada por Benito ­Mussolini. M – O Homem da Providência (Intrínseca, 608 págs., 99,90 reais) começa onde o best-seller anterior parou.

O segundo volume da trilogia vai de 1925 a 1932 e, como descreve a editora, “mostra desde as consequências das leis fascistas que desmantelaram o Estado italiano até o aniversário de 10 anos da Marcha sobre Roma, evento responsável, em grande parte, pela chegada de Mussolini e de seu partido ao poder”. Inclui-se no período o Tratado de Latrão, de 1929, que transformou a cidade do Vaticano em um Estado, sede da Santa Sé, e estabeleceu o catolicismo como religião nacional.

Entre os personagens reais, estão personalidades complexas que gravitavam ao redor de Mussolini, como Augusto Turati (1888-1955), uma ­figura obscura, viciado em ­esportes e em assédio sexual, e Margherita Sarfatti (1880-1961), jornalista e crítica de arte de origem judaica que foi uma das amantes do ditador e converteu-se ao catolicismo.

Scurati, que tem 52 anos, costuma definir-se, em entrevistas, como integrante da última geração italiana criada com valores antifascistas. Ele enxerga, nas novas gerações, uma certa nostalgia de ­Mussolini que, inevitavelmente, mina a democracia. Não à toa, tem se dedicado à monumental empreitada de construir aquilo que o New York Times define como “uma verdadeira lição de antifascismo em forma de romance”.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ele derrubou o Duce”

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