Saúde
As sequelas causadas pela Covid-19 desafiam os sistemas de saúde e os trabalhadores
O aumento de contaminação pela Ômicron acendeu o sinal de alerta dos cientistas.


Em agosto de 2020, o professor de Eletrônica do Instituto Federal de São Paulo Claudio Romanelli foi infectado pelo novo Coronavírus, antes da descoberta da vacina e quando ainda pouco se sabia sobre a doença. O episódio foi classificado como um quadro leve, sem problemas respiratórios nem internação. Apresentou um distúrbio renal agudo, logo contornado. O pior, no entanto, estava por vir. Acometido por uma “Covid longa” ou pelo que a Organização Mundial da Saúde define como “condição pós-Covid”, o professor de 51 anos carrega até hoje as marcas e as dores da moléstia: toma remédio para recuperar a capacidade cognitiva, que diminui com a doença, e para controlar o sistema autônomo e regular a flutuação de temperatura, o equilíbrio e a capacidade de andar. E mais: dois meses depois do diagnóstico, Romanelli começou a ter um problema de pele que deixou parte do corpo dele em carne viva e que ainda hoje é residual. A febre de 39 graus persistiu durante sete meses, assim como mal-estar, cansaço extremo e dor de cabeça.
“Depois de oito meses afastado do trabalho, retomei minhas atividades, com o suporte de remédios. Quando faço o teste de não tomar o medicamento, não funciona. Tento produzir textos relacionados à minha área de trabalho e tenho dificuldade. Quando voltei a ler, não conseguia entender o que eu mesmo tinha escrito. Foi aí que percebi que tinha alguma coisa errada”, relata Romanelli. “Os infectologistas achavam que existia outra doença em paralelo. Comprovadamente, tive Covid porque o PCR deu positivo, mas os sintomas eram tão diferentes que os médicos achavam que eles não tinham relação com o Coronavírus. Fizeram testes laboratoriais para tudo. O fato de a pele descolar dos membros foi documentado pela equipe de dermatologia da Unicamp. Eles achavam que era escabiose, e não era. Não tinha mais o vírus no corpo, mas os efeitos continuaram por vários meses. Chegaram ao diagnóstico por eliminação. Apareceu também uma calcificação numa válvula do coração, que não existia no mês anterior, pois eu tinha feito um check-up. Isso só apareceu após o diagnóstico de Covid.”
Os sintomas da “pós-Covid” incluem fadiga, dor de cabeça, ansiedade, depressão e problemas cognitivos
Sem um diagnóstico claro, o problema do professor é classificado como um “quadro inflamatório geral”, que não se conhece direito, mas está claro tratar-se de uma sequela deixada pelo Coronavírus. “A Covid é uma doença multissistêmica, afeta vários órgãos, como o sistema nervoso central e a parte cardiorrespiratória. Assim como outras doenças, a exemplo de herpes e rubéola, ela pode ser um gatilho para algumas inflamações, dependendo do comprometimento que a pessoa teve”, explica o infectologista e professor da Universidade de Pernambuco Demócrito Miranda. Artigos científicos têm documentado as sequelas deixadas pelo vírus, dentre eles um estudo recente publicado na revista Nature Medicine, a indicar as áreas mais atingidas: hematologia, renal, neuropsiquiatria e cardiopulmonar. “A exuberância e a variação de sintomas são tão grandes que não dá para caracterizar uma síndrome específica”, emenda Márcia Bandini, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp e diretora científica da Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora.
As principais queixas dos pacientes com essa condição são fadiga, dor de cabeça, sonolência durante o dia, insônia à noite, ansiedade, depressão e problemas cognitivos – entre eles perda de memória, déficit de atenção, dificuldade para realizar tarefas que fazia antes, como se houvesse desaprendido. Existem casos isolados de alterações neurológicas mais sérias, de pacientes que estão sem andar ou tiveram descompensações de doenças neurológicas e psiquiátricas graves. Neurocientista e professora da Unicamp, Clarissa Yasuda é mais uma vítima da condição pós-Covid. Assim como Claudio Romanelli, ela foi contaminada pelo Coronavírus em 2020, antes da vacina, e, quase dois anos depois, ainda enfrenta problemas de cognição. “Tenho dificuldade com questões cognitivas de alta performance. Preciso escrever artigos, produzir estatísticas, discutir projetos e resultados e, nessa demanda de alto desempenho, tive um prejuízo substancial.”
Impactos. No Piauí, centro de reabilitação atende cem pacientes por semana. Clarissa Yasuda relata problemas de cognição – Imagem: Redes sociais e Roberta Aline/CEIR
A médica é responsável pelo projeto NeuroCovid da Unicamp e coordena um estudo com quase 11 mil pessoas que tiveram Coronavírus e relatam ter ficado com sequelas. Ainda em andamento, a pesquisa mostra que alguns pacientes, mesmo tendo Covid leve, não retornaram à normalidade. Ela explica que não há um tratamento específico e que os estudos têm como objetivo entender o que está acontecendo no cérebro, principalmente porque os exames de imagens não apontam nada de anormal. “Grosseiramente, parece estar tudo bem, mas lá dentro está tudo errado. É angustiante. Há pacientes que não andam, pararam depois da Covid. Fizemos cinco ressonâncias e não encontramos nada. É algo muito difícil de entender. A gente procura, vira de cima para baixo, e não acha.”
O aumento de contaminação pela Ômicron acendeu o sinal de alerta dos cientistas. “Daqui a dois ou três meses, não sabemos qual a porcentagem dessas pessoas que vão apresentar alterações neurológicas ou cognitivas. Já há casos de adolescentes com alterações neuropsiquiátricas. É assustador. Nem tudo começa na fase aguda da infecção. Quando você acha que está bem, é que o drama começa a aparecer”, salienta a pesquisadora. Além disso, caso se confirme um grande número de sequelados, será mais um problema gerado para a rede de saúde, tanto pública quanto privada.
No Piauí, o Centro Integrado de Reabilitação atende uma média de cem pacientes por semana sequelados da Covid. A unidade chegou a atender 150 e ter fila de espera no pico da pandemia no Brasil, em meados de 2021. O governo estadual montou uma ala exclusiva para atender os pacientes de pós-Covid, com uma equipe multidisciplinar com fisioterapia física e respiratória, psicologia, fonoaudiologia, nutrição, infectologia, neurologia, fisiatria e cardiologia. “Dependendo do estágio que o paciente chega, se a parte pulmonar foi muito acometida, primeiro é feita uma ventilação não invasiva, para expandir o tórax, fazer uma limpeza brônquica, para depois passar para uma etapa de condicionamento físico”, explica Liceana Pádua, diretora do Ceir, acrescentando que alguns pacientes chegam com problemas neurológicos que causam fraqueza generalizada e atrofia da musculatura, às vezes perdem a capacidade de andar, sem falar que o próprio processo inflamatório da doença leva a uma perda muscular grande.
Os trabalhadores têm dificuldade de acessar o auxílio-doença para a “pós-Covid”, ainda em CID específica
O servidor público Willian Barroso, 46 anos, é um dos pacientes do Centro. Embora seu caso tenha sido leve, ele ficou com problemas na voz, teve perda muscular e continuou com um cansaço prolongado. Desde dezembro do ano passado, precisa ir três vezes por semana à unidade para fazer fisioterapia respiratória e muscular. Sente-se bem melhor. “Se precisasse acelerar o passo para atravessar uma rua, não conseguia de tão cansado que ficava, parecia não ter força nas pernas”, diz. “Muitos chegam aqui cadeirantes, outros evoluíram para um AVC e tiveram perda motora ou de fala, com perda de peso expressiva”, ressalta Pádua.
Os efeitos da condição pós-Covid refletem no mundo do trabalho. O Ministério da Previdência concedeu em 2020, primeiro ano da pandemia, auxílio-doença para 37.045 brasileiros por infecção por Coronavírus e para 51.327 por doenças respiratórias. Embora sem associar diretamente às sequelas deixadas pela Covid, o Ministério também liberou o benefício para 26.327 trabalhadores tratarem episódios depressivos graves. Em 2021, a concessão para infecção por Coronavírus quase triplicou, chegando a 98.787, e por doença respiratória reduziu para 21.139. Ainda sem um CID específico para a “pós-Covid”, muitas doenças não são relacionadas ao Coronavírus, o que dificulta na hora de o trabalhador solicitar o benefício.
“O trabalho desprotegido no Brasil influenciou o comportamento da pandemia. A gente começou a ver um desrespeito do afastamento dos trabalhadores que tinham sido contaminados e aí a gente chega no momento da pós-Covid. O que mais tem assustado é a parte neurológica e psicológica”, explica Márcia Bandini, que desenvolve um estudo sobre as sequelas do Coronavírus na vida do trabalhador. Ela relata que mais de 50% das pessoas que contraíram a doença apresentam quadro de fadiga prolongada, déficit de memória, depressão, falta de ar e distúrbio de sono, o que interfere diretamente na capacidade do trabalho. Em um estudo com bancários, a médica afirma que esses sinais estão presentes na maioria daqueles que foram acometidos pela doença. “Vimos que há uma infecção prévia pelo Coronavírus geralmente três meses antes dos sintomas (da pós-Covid) e estes duram dois meses ou mais e não podem ser explicados por outra causa.”
INSS. Em 2021, quase 100 mil trabalhadores receberam auxílio para tratar a Covid – Imagem: Jadson Marques/Futura Press
Marcia Kamei, chefe da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente de Trabalho do Ministério Público do Trabalho, também chama atenção para o risco que a condição pós-Covid representa para o mundo do trabalho e afirma que os procuradores têm recomendado que as empresas incluam os riscos da Covid nos seus programas de saúde ocupacional. Ela cita a Norma Regulamentadora 07, a fixar a reavaliação quando o afastamento é superior a 30 dias.
“O retorno ao trabalho sem verificar as possíveis sequelas pode trazer um mal maior do que a própria infecção. Imagine o risco de um trabalhador sofrer um apagão de memória enquanto opera uma máquina de corte. Não morreu com a Covid, mas pode perder a mão ou um dedo, pois não está em condições de operar adequadamente a máquina. Estamos diante de uma doença sobre a qual não temos ainda dados nem informações suficientes”, adverte Kamei, defendendo que a Covid deveria ser reconhecida como uma doença laboral.
A procuradora prevê que, com a pós-Covid, a tendência é o aumento de judicialização de ações trabalhistas. “Se o trabalhador for demitido, o caminho é a Justiça do Trabalho. Antes, pode-se buscar o médico do trabalho, a Cipa, reportar os casos para esses setores. As empresas nem sempre sabem. Se nada for feito, o trabalhador pode buscar os órgãos fiscalizatórios ou procurar o próprio Ministério Público do Trabalho”, diz. “A gente fragilizou a condição dos trabalhadores no início da pandemia, desrespeitou não só direitos, mas até requerimentos legais e, agora, na condição pós-Covid, o cenário tende a ser catastrófico.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “No rastro do vírus”
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