Cultura
Só a bailarina ainda tem
Estaria o tutu, símbolo duradouro da feminilidade diáfana e da fada do Quebra-Nozes, fora de moda?


O tutu da bailarina continua sendo objeto de desejo tradicional para muitas meninas: um símbolo duradouro da feminilidade diáfana, assim como na peça central que gira nas caixas de música infantis. Mas estaria sua antiga ligação com o mundo da dança profissional fora de moda?
Várias bailarinas e coreógrafas importantes acham que sim. Embora o figurino reluzente da Fada Açucarada no Quebra-Nozes talvez não tenha ainda sido enviado para os arquivos de trajes cênicos, seus dias podem estar contados.
No fim do ano passado, a ex-primeira-bailarina do Royal Ballet da Grã-Bretanha, a australiana Leanne Benjamin, falou francamente em público sobre sua rejeição ao tutu. Ela ficaria contente em nunca mais ter de usar um, segundo confidenciou a uma plateia reunida na embaixada australiana para marcar o lançamento, no Reino Unido, da autobiografia Built for Ballet (Feita para o Balé). Leanne disse que os figurinos tradicionais das bailarinas sempre lhe pareceram apertados.
Falando ao Observer, a bailarina e professora de 57 anos admitiu que o traje convencional ainda tem muitos apreciadores entre suas colegas de balé. “A evolução do tutu destinava-se a exibir as pernas”, disse ela. “Em meu livro, conto que, pessoalmente, não gostava de usar tutu, mas a maioria de minhas contemporâneas adoram.”
Leanne deixa claro que suas opiniões podem não ter importância. “Não sou diretora de uma companhia e, por isso, falo hoje como espectadora”, contemporizou. “Não tenho certeza se as distinções de gênero entram na discussão, mas os tutus marcam um estilo de figurino, e as conversas que temos hoje podem afetar as decisões sobre o seu uso. Acho que todos esperamos e apreciamos a evolução e, dessa forma, vamos aceitar o que vier em seguida.”
Na terra natal de Leanne, a Companhia Nacional de Balé anunciou uma nova temporada de trabalho que vai se distanciar de figurinos bonitos e das encenações ortodoxas. O diretor artístico David Halberg, que comanda o Balé Australiano desde o ano passado, não programou nenhum dos clássicos “balés de tutu”, como O Lago dos Cisnes, Giselle ou A Bela Adormecida, e está ansioso para tirar uma folga das camadas de tule ondulantes.
“Acredito que o público de balé na Austrália é muito aberto a novidades”, disse ele recentemente ao Guardian. “Existe uma abertura.”
Os tutus não foram banidos para sempre, afirma Halberg, mas suas bailarinas querem algo diferente. “Elas não estão presas à tradição ou à pátina de companhias como o Bolshoi ou o Royal Ballet. Elas podem absorver estilos variados com mais facilidade que uma bailarina treinada no estilo francês, russo ou inglês.”
“As jovens estão muito ligadas em questões de gênero e estereótipos”, diz a inglesa Jo Meredith
E essa revolução no departamento de figurinos não se limita às australianas. Tamara Rojo, aclamada bailarina espanhola que é diretora-artística do Balé Nacional da Inglaterra no Coliseum em Londres, também está evitando o tutu-padrão em seu primeiro trabalho como coreógrafa e diretora, simultaneamente.
Apesar de Tamara ter escolhido apresentar uma obra consagrada – Raymonda, de Alexander Glazunov e Marius Petipa –, sua abordagem é revisionista, se não radical. Não apenas os figurinos convencionais da obra serão postos de lado, como também a ênfase da narrativa está sendo refeita para refletir temas modernos.
No terceiro ato do balé, em que geralmente há claras influências húngaras numa grande cena de casamento passada na corte do rei André II da Hungria, que comandou as cruzadas em 1217, Tamara aboliu os tutus brilhantes e adereços ornamentados. Em vez disso, vai mostrar um coro de imigrantes europeus ajudando Raymonda nas colheitas em sua terra.
Jo Meredith, diretora de criação do Balé Nacional Jovem do Reino Unido, também decidiu abandonar muitas das ortodoxias tradicionais de encenação em sua última produção de Os Sete Pecados Capitais, de Kurt Weill.
“Geralmente, as bailarinas jovens têm uma agenda muito clara e estão muito ligadas naquilo que diz respeito a questões de gênero e estereótipos em cena”, diz. “A ideia de figurinos de gênero neutro também funciona muito bem com este espetáculo, que se passa nos anos 1930. Vamos colocar todo mundo de smoking.”
Trata-se de uma decisão especialmente adequada a uma produção de outra era, quando a androginia visual era comemorada, mas Meredith acredita que pode servir a um balé de qualquer época.
“Nós já usamos tutus curtos clássicos, assim como os tutus românticos, mais compridos, que vemos com frequência em Giselle ou em muitas pinturas de Degas”, diz a diretora do Balé Nacional Jovem do Reino Unido. “Mas a ideia da bailarina está evoluindo e, embora sempre haja um lugar para a Fada Açucarada, é muito interessante ver o que Tamara está fazendo com Raymonda no Coliseum. É um modo de manter o balé atual e atraente.”
Leanne Benjamin concorda que, neste momento, apresentar obras históricas sem tutus “pareceria um escândalo”, mas pondera que eles nem sempre são relevantes em uma produção recriada.
Ela acrescenta que não está dizendo que os tutus devam desaparecer de repente. “Sei que eles podem ser lindos, e que evoluíram. No entanto, a realidade é que você avalia como a coisa toda funciona em conjunto.
“Veja como (o bailarino norte-americano) Stephen Galloway foi inspirado pelo tutu para atualizar seus figurinos para o novo Vertiginous Thrill of Exactitude
(A Emoção Vertiginosa da Exatidão), de William Forsythe, no Ballett Frankfurt no ano passado. E como Serena Williams deu sua opinião a respeito, usando um vestido em estilo tutu na quadra de tênis.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Só a bailarina ainda tem”
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