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Nietzsche, Putin e Biden

Quando os outros homens são considerados apenas mercadorias concorrentes

Nietzsche, Putin e Biden
Nietzsche, Putin e Biden
Foto: JIM WATSON, ALEXANDER NEMENOV / AFP
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Ex-ministro do governo Temer e ex-comandante da 3ª Divisão de Exército de Santa Maria, o general Sérgio Etchegoyen fez uma análise interessante da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

“A paz, estado de harmonia, como a gente imagina, não é fruto da generosidade humana entre os países. É uma concessão do mais forte. Ele concede a paz nas condições que lhe convém. A Europa estava submetida à paz que interessava à Otan e aos EUA. Não era a paz que interessava à Rússia e a Putin. Era uma paz que empurrava os meios da Otan em direção às fronteiras russas, numa ameaça permanente. Esse estado de paz, quando é desequilibrado, aparecem as disputas e os conflitos por um novo status, para reescrever a paz segundo as circunstâncias novas, e Putin tenta impor a paz que lhe interessa, que é uma paz com as armas longe da fronteira dele, é uma paz com a Ucrânia submetida a ele política e militarmente, e é isso que eles estão fazendo.

“Putin, pressionado pela Otan, adotou um ato de guerra, tem vidas sendo perdidas, isso é uma tragédia. Mas o objetivo da guerra é sempre a paz. Ninguém faz guerra para fazer guerra, faz uma guerra para modificar o status e reivindicar condições que lhe convenham. É isso que Putin está tentando, e quem sofre com isso é a população.”

As declarações do general ­Etchegoyen trouxeram à lembrança os escritos de Nietzsche a respeito dos poderes dos fortes e das misérias dos fracos.

Na Genealogia da Moral, Nietzsche não hesita em afirmar que “o grande perigo para os homens são os indivíduos doentios, não os maus, não os predadores. São os desgraçados, os destruídos, os vencidos de antemão – são eles, são os fracos que mais solapam a vida entre os homens, que envenenam e colocam em questão da maneira mais perigosa a nossa confiança na vida e nos homens”.

Nietzsche é impiedoso com as virtudes. Ele as vê como instrumentos das forças que pretendem manter o homem subjugado e abatido em sua humanidade. A compaixão, por exemplo, é a confirmação da regra da desumanidade revelada através da exceção que ela pratica. Uma situação humana que suscita compaixão é, em si mesma, a prova da injustiça. Exaltar a compaixão é buscar a confirmação da dependência do outro, de sua alienação e desumanização, na medida em que o homem que a recebe não pode realizar em liberdade a sua natureza criadora.

Para Nietzsche, a compaixão é “mais prejudicial do que qualquer vício”.  A compaixão é uma pérfida descoberta do cristianismo para impedir os “fortes de fazerem aquilo que por natureza lhes cabe, nomeadamente, submeter os “fracos” e fazerem deles o que bem entenderem.

“Exigir dos fortes que não se comportem como fortes, que não tenham uma vontade de poder, uma vontade de submeter os outros, uma vontade de senhores, uma sede contra os inimigos, de resistência e de triunfo, faz tão pouco sentido como exigir dos fracos que se comportem como fortes.” (Genealogia da Moral.)

Zarathustra pregava a virtude como uma emanação da Vontade de Potência, o modo de ser do homem reinstaurado em sua natureza e aliviado da carga de falsos valores que aprisionam a existência humana. É preciso resgatar o mundo do Mito, em que a virtude era a sua própria recompensa. Nesse mundo dos deuses humanizados ou dos homens divinizados, a virtude não requeria nenhuma retribuição nem contrapartida: “Nem vingança, punição, prêmio ou retribuição”.

O filósofo Norbert Trenkle reconhece a modernidade da Vontade de ­Potência nietzschiana. Trenkel afirma que ­Nietzsche cuida de algo muito diferente da vontade de poder arcaica. Trata, na verdade, da disposição interna do sujeito empenhado na concorrência desenfreada imposta pelo moderno sistema sociopolítico-econômico capitalista. Coisas menos patéticas, mas não menos agressivas podem encontrar-se em inúmeros manuais de gestão e nos panfletos social-darwinistas da propaganda do Liberalismo e do Neoliberalismo.

A invocação da Natureza Humana pelos senhores e fâmulos dos mercados é, na realidade, apenas a afirmação mistificada e inconsciente da ordem dominante e das suas leis de movimento. A “segunda natureza” é constituída pelas forças impessoais da abstração real que controlam os destinos dos homens. Os sujeitos concretos – mulheres e homens de carne e osso – que sobrevivem no mundo da vida, o mundo dos afetos e das necessidades, são metamorfoseados em objetos miseráveis do movimento das formas econômicas e sociais, empenhadas na maximização do ganho monetário. Essa passagem sistêmica do concreto ao abstrato impõe aos homens o “dever da apatia” e a absoluta indiferença perante o conteúdo e as consequências das suas ações e, sobretudo, perante os outros homens, considerados apenas mercadorias concorrentes.

Nessa arena concorrem Putin e Biden. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nietzsche, Putin e Biden”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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