Economia
Os desafios na economia do novo governo nos primeiros meses de gestão
A agenda de recuperação econômica envolve, além de medidas imediatas para enfrentar a grave crise socioeconômica, o encaminhamento de questões como a política fiscal e a política industrial


Causa frequente tanto do sucesso quanto do fracasso dos governos, a condução da economia estará em primeiro plano a partir de 2023, quando começará a ser testada a capacidade do novo presidente de articular medidas de efeito rápido e encaminhamentos de médio e longo prazo, com consistência técnica e sustentação política, para superar a crise sem precedentes do sistema produtivo e da sociedade.
Em dois debates, organizados pela UFRJ e pela TVGGN, economistas discutiram desafios e medidas que um eventual novo governo de oposição deveria adotar para encaminhar uma recuperação. Dado o grau de devastação social e de destruição da infraestrutura institucional da economia após oito anos de arrocho fiscal que acorrentou o País entre a recessão e a estagnação, medidas de efeito no curto e no médio prazo serão essenciais no início do governo, defende o economista João Furtado, professor da USP. “Estamos em situação tão crítica que teremos de juntar políticas sociais muito vigorosas logo no início”, defende Furtado. O governo precisaria coordenar uma série de estímulos macroeconômicos para o Brasil voltar a funcionar. “É fundamental tomar rapidamente um conjunto de iniciativas de políticas sociais. Isso para mim está claro, mas não estou convencido de que nós sabemos o que vamos fazer com as políticas econômicas para revigorar o sistema produtivo que está tão debilitado há tantos anos”, pondera.
Caso haja uma política de relançamento da economia no ano que vem, diz, duas ações são importantes para “ajudar a retomar a economia e evitar que as aves de mau agouro da Faria Lima peçam aumento dos juros para controlar a inflação”. A primeira é uma política rápida de recuperação do setor de mobilidade. As empresas do setor sofrem com a pandemia, e elas não são empresas privadas, mas um ativo da cidade, que precisam dessas empresas. É preciso recuperar essas companhias e o sistema de transporte público, pois quem mais sofre com o problema são aqueles que moram longe, os mais pobres.
É possível evitar a pressão da Faria Lima por aumento de taxa de juros
“Essa é a primeira questão”, sublinha Furtado. A segunda é que, ao invés de fazer um megaprograma habitacional, com grandes investimentos, é preciso financiar as famílias para melhorarem e expandirem as suas residências. O puxadinho, a edícula, a reforma que aumenta a capacidade da casa, tudo isso é importante porque se houver uma recuperação, o preço dos aluguéis vai subir, pressionará a inflação e o mercado financeiro e os economistas dogmáticos vão convencer que só é possível fazer isso aumentando os juros. “Nós sabemos o que vai acontecer no ano que vem, sabemos quais são os principais preços que vão ameaçar a inflação. Então nós precisamos fazer políticas corretas. E como o Minha Casa, Minha Vida demora cinco anos para produzir resultados, deve-se fazer o combate mais simples, que vai na direção de propostas com modéstia e efetividade ao invés de ambição com alta taxa de risco de fracasso.”
O economista da USP defende também projetos “modestos, com base em programas conhecidos, que já foram operados e contam com avaliações positivas, portanto podemos aumentar a sua escala com relativa segurança de que vão funcionar”, a exemplo do programa das cisternas para coleta e armazenamento da água da chuva.
Além de identificar com precisão os investimentos prioritários, é preciso colocá-los em prática de modo a beneficiar quem vive em situação mais precária. “Há uma questão fundamental para viabilizar os investimentos, que é o fato de ainda existir uma concentração muito grande da arrecadação e dos recursos com a União, enquanto a operacionalização dos investimentos, muitas vezes até por força legal, é feita pelos estados e municípios. É essencial que a Fazenda consiga proporcionar recursos para que esses investimentos ocorram nos municípios, que é onde a dor é sentida”, ressalta o economista Gabriel Galípolo.
Puxadinho. O estímulo à construção civil pode impulsionar o crescimento – Imagem: iStockphoto
Essa operacionalização, diz, não é simples. Na contratação de investimentos em saúde, educação, infraestrutura, há sempre uma presença muito grande do governo federal por trás do processo, com recursos. “Ser credor de um município ou de um estado, muitas vezes em projetos que vão transcender um mandato, é muito diferente de deter um contrato a ser pago por quem tem autoridade monetária e pode emitir a moeda que liquida a obrigação”, sublinha Galípolo. O poder concedente responsável pelo saneamento básico, por exemplo, é o município. É frequente municípios com recursos hídricos não terem recursos financeiros e é preciso fazer subsídios cruzados nessas áreas.
Apesar de extremamente importante, a operacionalização não costuma receber a atenção necessária por parte dos economistas. “Discute-se pouco esse problema, até porque o nosso processo democrático virou um grande culto à personalidade: qual é o nome que vai resolver?”, crítica Galípolo. “Deveríamos passar mais tempo discutindo quais são as fontes de recursos, de quem se vai cobrar, para que tipo de projeto eles vão se destinar, tudo à mais plena luz do dia. O orçamento não é uma peça técnica, ele é um pilar ético desse sistema de compromisso mútuo que é viver em sociedade.”
Conseguir distribuir os recursos da União por estados e municípios é fundamental
Outro obstáculo é a falta crônica de bons projetos de investimento. Um caso exemplar, mencionado no debate, é o das debêntures de infraestrutura. Em 2021, a emissão de debêntures de infraestrutura superou 40 bilhões de reais, um dos maiores volumes de todos os tempos, mas a FGV registrou o menor investimento em infraestrutura da série histórica iniciada nos anos 1950. A explicação é que a maior parte desses recursos não foi para novos investimentos, mas para substituir dívida velha por dívida mais barata. Além disso, o estoque de debêntures mostra que mais de 70% desses investimentos estão no setor de energia e cerca de 20%, em logística e transporte, que se sustentam com cobrança de receita tarifária. Não são destinados aos setores nos quais o País é mais carente, como educação e saúde.
Além do desafio de montar uma estrutura organizacional para chegar em quem efetivamente sente o problema, há o problema de os funcionários públicos que tomam decisões estarem de mãos atadas, no chamado apagão das canetas dos entes públicos, resultado da carência de recursos causada pela política de arrocho fiscal combinada à elevada probabilidade de questionamento posterior, pelos órgãos de controle, acompanhado de punição.
A agenda de recuperação econômica envolve, além de medidas imediatas para enfrentar a grave crise socioeconômica, o encaminhamento de questões como a política fiscal e a política industrial. Segundo a economista Julia Braga, professora da UFRJ, o primeiro passo do próximo governo deveria ser um planejamento da expansão real dos principais tipos de gastos públicos e transferências a partir de uma meta realista de taxas de crescimento do PIB, condicionado a uma avaliação do cenário internacional, das contas externas do País e da capacidade de expansão do setor elétrico. “Gastos públicos não devem ser limitados por um teto, mas precisam ter sua expansão planejada, de acordo com o crescimento que a economia pode ter. A restrição externa e do setor elétrico sempre foram obstáculos relevantes à expansão da economia brasileira e são essas que devem ser avaliadas. Em vez de um teto para o tamanho da dívida pública, deve existir um teto no pagamento de juros reais da dívida”, ressalta a professora da UFRJ.
O segundo passo, diz, seria o governo definir o valor da meta para o resultado primário com um limite inferior e superior para acomodar variações inesperadas da receita tributária e deixar que os estabilizadores automáticos atuem em períodos de crise. “Dado o cenário de alto desemprego, subemprego, baixo crescimento da produção industrial, fome e miséria”, enumera a economista, “é provável que seja necessário estabelecer um centro da meta de resultado primário como um déficit público nos primeiros anos de governo. Conforme a economia for reagindo a meta pode mudar para superávit primário. Mas sempre com um intervalo associado.” Braga destaca ainda a necessidade de uma reforma tributária que torne a carga tributária menos regressiva.
Água. A retomada do programa de cisternas é barato, estimula a economia e aumenta o bem-estar – Imagem: Sérgio Amaral/MDS
“A transformação tecnológica e a sofisticação produtiva são elementos centrais e condições vitais, sine qua non, para qualquer agenda progressista que tenha capacidade para manter, ao menos num horizonte razoável de médio ou de longo prazo, um percurso de crescimento com relativa estabilidade política e social”, afirma o economista Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Unicamp. “No fundo”, sublinha Diegues, “se não há sofisticação da estrutura produtiva que é fundamentada na política industrial, os limites de um governo progressista são muito facilmente colocados, estão muito próximos, ali na esquina.”
É claro, diz, que estabilidade político-social não depende fundamentalmente da dimensão produtiva, “mas esta dimensão constitui um elemento central para viabilizar ou aumentar o espaço para amenizar as tensões associadas ao processo de desenvolvimento, reduzindo desigualdades ao mesmo tempo que se combina o aumento da produtividade com o crescimento econômico e desenvolvimento e dá a sustentabilidade desse processo no longo prazo, inclusive para garantir empregos de qualidade, melhor remuneração e todos os demais impactos positivos que a manufatura traz.
O economista da Unicamp destaca que “a fragilidade da estrutura produtiva talvez tenha sido também um elemento que contribuiu negativamente para a redução da capacidade de sustentar uma trajetória razoavelmente virtuosa como a observada no período dos governos petistas”. “Política industrial precisa ser uma prioridade política. O País foi bem-sucedido nessa área durante um período longo, de 1930 a 1980, mas com políticas forjadas por um paradigma tecnoprodutivo que passa por enormes transformações. É preciso ter recursos para uma reformatação das instituições, não no sentido de governança, mas de instrumentos e diretrizes mais adequadas à transformação do paradigma tecnoprodutivo”, ressalta Diegues. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ajuste fino “
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