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Quem ganha e quem perde com o prolongamento da ‘Guerra Fria’ entre a Rússia e Ocidente?
A crise desenrola-se em diferentes esferas: política, econômica, tecnológica


As esperanças brevemente ampliadas de se evitar uma guerra “horrorosa” na Ucrânia novamente se dissipam depois que os Estados Unidos previram uma invasão nos “próximos vários dias” e autoridades britânicas disseram acreditar que o presidente russo, Vladimir Putin, tinha decidido atacar.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que a Rússia está “envolvida em uma operação de bandeira trocada para ter uma desculpa para invadir”, e que tem aumentado, e não reduzido, suas tropas. Essa análise foi repetida em outros países da Otan e da União Europeia, que preparam sanções punitivas. Os esforços diplomáticos para conter a escalada para a guerra ainda não foram esgotados. Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano, deverá reunir-se com seu colega russo, Sergei Lavrov, na Europa, supondo que não haja uma invasão. Eles vão discutir as exigências russas de uma retirada da Otan da Europa Oriental e restrições à mobilização de mísseis dos EUA. Lavrov também vai insistir que a Ucrânia tenha sua entrada na aliança militar ocidental permanentemente negada.
Embora uma invasão armada não tenha acontecido ainda, a “guerra pela Ucrânia” de 2022 é travada em diversas frentes não militares, políticas, diplomáticas, econômicas, tecnológicas e secretas. Quem está ganhando até agora?
A crise desenrola-se em diferentes esferas: política, econômica, tecnológica
Vladimir Putin
A pergunta está na boca de todo mundo: o que Putin quer? Uma teoria é que o ex-oficial da KGB (polícia secreta soviética) e motorista de táxi em meio período tem um velho rancor. Ele tem uma necessidade visceral de homem pequeno de provar sua superioridade (e a da Rússia) aos vencedores ocidentais da Guerra Fria, mas também para as antigas elites soviéticas, de cujas fileiras ele foi excluído.
Especialistas dizem que Putin está decidido a recriar as supostas glórias da era soviética. Ele considera o colapso da União Soviética uma tragédia geopolítica. Vista desse modo, uma conquista da Ucrânia faz parte de um esquema maior de reconstruir uma esfera de influência russa abrangendo o Leste Europeu e a Ásia Central.
Uma explicação menos complexa é que Putin vê a Ucrânia como parte integral da Rússia histórica, e os ucranianos e os russos como um mesmo povo. Ele afirma que a Ucrânia não é um país real. Para ele, a reabsorção na pátria é natural e lógica, enquanto os esforços dos líderes de Kiev de se alinharem com o Ocidente são uma heresia. Especialistas dizem que Putin está decidido a recriar as supostas glórias da era soviética. Ele considera o colapso da União Soviética uma tragédia geopolítica.
Vista desse modo, uma conquista da Ucrânia faz parte de um esquema maior de reconstruir uma esfera de influência russa abrangendo o Leste Europeu e a Ásia Central.
Ele está vencendo? Putin conseguiu forçar o Ocidente a considerar suas preocupações de segurança. Ele intimidou a Ucrânia. E lembrou a uma Europa ameaçada a sua dependência do gás russo.
Ao mesmo tempo, revigorou enormemente a Otan, mudou de forma permanente as teses de segurança ocidentais, uniu os Estados Unidos e a Europa contra ele e reforçou a reputação da Rússia como um Estado vilão que ignora a lei internacional e descumpre sua palavra.
Joe Biden
O presidente dos EUA agiu relativamente rápido em relação à Ucrânia. E precisava. A caótica retirada de tropas do Afeganistão no ano passado e o dano resultante à credibilidade da Otan foram expostos contra ele. Com a Covid e os problemas econômicos prejudicando seus índices de aprovação, Biden não podia repetir um desastre de política externa.
Depois de fazer da promoção da democracia e dos direitos humanos em todo o mundo um objetivo da política externa, Biden não podia ficar alheio enquanto a Rússia ameaçava um Estado livre, independente e democrático.
A abordagem de Biden à crise é influenciada por dois fatores estratégicos adicionais. Um é o seu objetivo de revigorar a aliança transatlântica, minada por seu antecessor, Donald Trump. O outro é seu desejo de demonstrar à China, aliada da Rússia, que os EUA apoiarão firmemente seus amigos, estejam na Ucrânia ou em Taiwan.
A tática de Biden pode ter conseguido evitar uma invasão até agora. Há dois grandes detalhes. Um é que as tentativas de Washington de encontrar uma solução diplomática enfrentaram dificuldades, enquanto sua posição dura pode ter comprometido os esforços europeus. Esse vácuo é perigoso. A outra grande reserva é que Biden controversamente prometeu desde o início que as forças norte-americanas não lutariam para defender a Ucrânia, que não é membro da Otan. Putin ainda poderá tirar vantagem dessa nada americana demonstração de cautela.
Garoto de recados. Jonhson é o retrato da irrelevância do Reino Unido – Imagem: Simon Dawson/10 Downing ST
Volodymyr Zelensky
O presidente da Ucrânia impressionou os líderes mundiais, na conferência de segurança em Munique, com um discurso corajoso e direto, depois de ignorar advertências para que ficasse em casa por medo de uma tentativa de golpe inspirada pela Rússia. Sua reação à crise em desdobramento surpreendeu alguns no Ocidente.
A aspiração da Ucrânia a entrar na Otan está no centro da crise. Zelensky é pressionado pelos governos europeus a abandonar esse objetivo, uma exigência da Rússia, e adotar uma posição neutra, não alinhada. Ao menos até agora o governo de Kiev, no papel de suposto perdedor, se beneficiou de maior apoio, entregas de armas e ajuda financeira internacionais. Ele diz que qualquer guerra seria sobre o futuro da Europa, não só da Ucrânia.
Verdade ou não, os ucranianos serão os grandes perdedores se Putin recorrer à força.
Emmanuel Macron e Olaf Scholz
Emmanuel Macron, o presidente francês que também ocupa a presidência rotativa do Conselho de Ministros da União Europeia, atirou-se à linha de frente diplomática. Enquanto os norte-americanos e russos discutiam as exigências de Moscou de novos acordos de segurança na Europa, Macron encontrou-se com o russo em Moscou e esboçou possíveis compromissos.
Essas ideias, incluindo o reconhecimento das preocupações russas sobre a expansão da Otan, sua mobilização em direção à Europa Oriental e atuais e futuras capacidades de mísseis norte-americanos na Polônia e na Romênia, ainda poderão constituir a base para um acordo. Macron também levantou a possibilidade de a Ucrânia adotar uma posição neutra, parecida com a da Finlândia durante a Guerra Fria.
Macron precisa, porém, do apoio da Alemanha, mas Olaf Scholz, seu recém-eleito chanceler, pareceu dividido. De um lado, ele quer salvar o gasoduto Nord Stream 2 da Rússia. De outro, sofre intensa pressão de Biden para abandoná-lo e apoiar as sanções ao Kremlin. Scholz surpreendeu seus críticos quando se reuniu com Putin em Moscou. Ele teve um desempenho irritadiço, levantando questões sobre liberdade de imprensa e direitos humanos.
O papel da União Europeia foi deixado de lado durante a crise
Isso pode ter tranquilizado aliados agressivos como a Polônia e as repúblicas bálticas, que o acusaram de ser “mole” com a Rússia. Ao mesmo tempo, Scholz extraiu um compromisso de Putin, o de continuar dialogando na linha da abordagem de Macron. O papel da União Europeia foi deixado de lado durante a crise, mas os líderes francês e alemão saíram com reputações reforçadas. Até agora.
Boris Johnson
Prejudicado por escândalos decorrentes de suas festas ilegais durante o lockdown e supostamente ansioso para mudar de assunto, Boris Johnson se apoderou da crise da Ucrânia no fim de janeiro, depois de tê-la amplamente ignorado no início.
Sob sua instrução, Downing Street começou a informar sobre um amplo movimento do governo para tratar da crise. A Grã-Bretanha, afirmou Johnson, lideraria as tentativas ocidentais de dissuadir a Rússia. Mas dizer e fazer são coisas diferentes. Sugestões de que esse novo esforço para ajudar a Ucrânia fazia parte da chamada Operação Salvar Cachorro Grande para resgatar sua carreira foram desmentidas, é claro.
A ênfase britânica para a dissuasão firme veio à custa da diplomacia. Ela contribuiu com quase nada para os esforços de paz. Quando Liz Truss, a secretária do Exterior, se reuniu com Lavrov em Moscou, as conversas acabaram em um gélido impasse.
Tudo o mais posto de lado, a crise na Ucrânia salientou de maneira brutal a influência reduzida da Grã-Bretanha no exterior. Separado por escolha própria da União Europeia, o Reino Unido hoje é visto na Rússia (e em grande parte da Europa) como pouco mais que um líder de torcida e um menino de recados dos Estados Unidos. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
ARMAS A POSTOS
A diplomacia continua a falhar na crise da Ucrânia
por Sergio Lirio
Avanço. Tropas russas vão dar apoio aos separatistas ucranianos – Imagem: Sergei Supinsky/AFP
Nas últimas horas, a diplomacia, tanto quanto a verdade, tornou-se uma vítima prematura da “guerra”. Os esforços empreendidos até então caíram por terra e as negociações retornaram à estaca zero, ou quase, embora Vladimir Putin e Joe Biden tenham concordado com uma nova rodada de conversas mediada pelo presidente francês, Emmanuel Macron. Não se pode colocar a escalada das tensões na conta exclusiva da Rússia. O serviço de inteligência dos Estados Unidos continua a distribuir alertas sobre supostos planos “macabros” do Kremlin e é difícil entender se os comunicados derivam de informações concretas ou de uma estratégia para testar a coragem e a paciência de Putin. O mais recente desses informes, entregues à ONU, descreve um suposto esquema russo para assassinar lideranças ucranianas pró-Europa em caso de invasão.
A conferência de segurança em Munique, por sua vez, jogou gasolina no fogo ao virar um palanque de defesa da Ucrânia e palco para o presidente do país, Volodymyr Zelensky, que voltou a pedir ao Ocidente a definição de uma data para o ingresso na Otan. “Se ocorrer uma invasão, os Estados Unidos e aliados estão prontos a impor sanções sem precedentes à Rússia”, declarou Kamala Harris, vice-presidente dos EUA, durante o encontro na Alemanha.
Putin, em resposta, decidiu, na segunda-feira 21, rasgar o acordo de Minsk, assinado em 2014, para, em tese, colocar um ponto final na guerra civil ucraniana. Em tese, pois as negociações de cessar-fogo nunca foram respeitadas e os conflitos entre grupos paramilitares deixaram um saldo de 14 mil mortos nos últimos oito anos. O presidente russo valeu-se do aval do Parlamento e reconheceu as duas autoproclamadas repúblicas no leste da Ucrânia: Donetsk e Lugansk. Os recentes confrontos na região conhecida como Donbass registra dois mortos até o momento, além do constante fogo cruzado que provoca um fluxo de refugiados. “Ameaça grave à segurança russa”, declarou Putin a respeito da aproximação entre o governo ucraniano e a Otan. No mesmo dia, Washington anunciou sanções econômicas às duas regiões separatistas.
Na conferência em Munique, o chanceler alemão, Olaf Scholz, deu um passo no muro em direção ao Ocidente: “A paz na Europa só pode ser preservada se as fronteiras não forem alteradas”. Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China, alertou a Rússia a respeito do risco de fragmentação do território ucraniano, mas não poupou a Otan por seu projeto de expansão contínua no Leste Europeu.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Aposte suas fichas “
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