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Da aproximação entre EUA e China nos anos 1970 à crise na Ucrânia

Após mais de 40 anos, um potencial conflito militar na Ucrânia possa significar ameaça à hegemonia norte-americana

Da aproximação entre EUA e China nos anos 1970 à crise na Ucrânia
Da aproximação entre EUA e China nos anos 1970 à crise na Ucrânia
Manter os inimigos por perto. Esse aperto de mão de Zedong e Kissinger foi bom para um e não tão interessante para o outro - Imagem: Arquivo AFP
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Ao comentar a crise na fronteira da Ucrânia no Project Syndicate, Brahma ­Chellaney adverte em tom alarmante que a “América foca no inimigo errado”. Para o professor de Estudos Estratégicos do New Delhi-Based Center for Policy Research e integrante da Robert Bosch Academy em Berlim, Joe Biden trata a Rússia como um “par concorrente”, quando deveria estar centrado no desafio do real “par” da América, a China. Destaca que a China apresenta população e economia quase dez vezes superior à Rússia, e suas despesas militares são, aproximadamente, quatro vezes superiores. “A China não é apenas mais poderosa, mas genuinamente busca suplantar os EUA como potência global proeminente… líderes norte-americanos cometeram um erro fatal, desde a Guerra Fria, ao colaborar com a ascensão da China. Eles ajudaram a criar o maior rival que seu país já enfrentou.”

Henry Kissinger, que participou desses primeiros movimentos de aproximação entre Estados Unidos e China, como assessor de Segurança Nacional durante a gestão Richard Nixon (1969-1974), descreve o processo como resultado de interesses comuns em frear a “ameaça do projeto de hegemonia soviética”. Pelo lado chinês, na busca por sua sobrevivência como país soberano. Pelo lado norte-americano, como tentativa de impedir um desequilíbrio de poder em favor de Moscou pela dominação do território e do povo chinês.

As tensões entre soviéticos e chineses culminam em um ataque antecipado, em 1969, a uma patrulha soviética na ilha de Zhenbao, na fronteira da Sibéria com a China. O ataque foi parte da estratégia chinesa para desencorajar os líderes soviéticos e pôr fim a uma série de conflitos fronteiriços, vistos por Pequim como “assédios soviéticos”.

O tiro saiu pela culatra. Os soviéticos deslocaram mais de 1 milhão de soldados para a fronteira e elevaram a possibilidade de uma guerra sino-soviética. Mao Tsé-Tung se encontrava isolado, rodeado por ameaças: a URSS ao Norte, a Índia a Leste, os EUA mobilizados no Vietnã e sua influência no autoproclamado governo autônomo de Taiwan, e o Japão, adversário histórico e em ascensão econômica, a Oeste. O establishment norte-americano tomou conhecimento do confronto por meio do embaixador da URSS nos EUA, Anatoly ­Dobrynin, que solicitou uma reunião com ­Kissinger, para informar a versão soviética dos fatos. A inusual preocupação em tempos de Guerra Fria abriu a possibilidade de um novo arranjo nas relações entre ­Washington, Pequim e Moscou.

Segundo Kissinger, a aproximação com a China, para Nixon, era uma chance de redefinir a política externa e demonstrar ao público que, mesmo no meio de uma guerra debilitante no Vietnã, os Estados Unidos estavam em posição de propor um plano para uma paz duradoura, restabelecendo contato com um quinto da população mundial para contextualizar e mitigar o “sofrimento de uma retirada imperfeita de um canto do Sudeste Asiático”.

A Rússia é o “inimigo errado”. O real fica um pouco mais a Leste

O paladino da diplomacia do pingue-pongue na era da Guerra Fria, Zhuang Zedong, revelou, em uma palestra na Califórnia em 2007, que, embora a orientação oficial de então fosse mesmo evitar contato com os norte-americanos, Mao Tsé-tung lhe havia dito pessoalmente que buscasse uma aproximação.

No início dos anos 1980, a China acelerou em direção a um projeto de inserção competitiva no mercado globalizado, realizando reformas políticas e diversos acordos comerciais regionais. Em 1986, a economia chinesa passou a ser observada pelo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) em busca da sua inclusão na Organização Mundial do Comércio (OMC). Nos anos 1990, o engajamento norte-americano desempenhou papel essencial para a inclusão da China na OMC. O discurso do então presidente Bill Clinton­ exaltava o acesso ao potencial mercado consumidor chinês, enquanto os interesses corporativos, com forte poder de lobby em Washington, almejavam facilitar o offshoring de empresas baseadas nos EUA, para poder exportar de países com menores custos de produção para o mercado consumidor norte americano.

A China ingressou na OMC em dezembro de 2001, ampliando o acesso a investimento estrangeiro e ao mercado global e provocando transformações no comércio e nos fluxos de capitais internacionais, patentes nos dados de investimento direto estrangeiro norte-americanos e na conta corrente chinesa.

A China tirou proveito da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro, mas as estratégias nacionais definiram as políticas de absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.

O país conseguiu administrar uma combinação favorável entre câmbio real competitivo e juros baixos. Os investimentos em infraestrutura e as empresas públicas atuaram como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global. O sistema financeiro desempenhou a função de orientar a trajetória do desenvolvimento econômico, para dirigir e facilitar o investimento produtivo.

É curioso, para usar um eufemismo, que, após mais de 40 anos, um potencial conflito militar na Ucrânia possa significar ameaça à hegemonia norte-americana, por catalisar a aliança entre China e Rússia, apresentado por Brahma ­Chellaney como o pior resultado para os EUA.

Em 2014, Kissinger escreveu no ­Washington Post sobre a crise na ­Ucrânia daquele momento. Apresentou uma aula sobre a complexidade histórica da região, constantemente desafiada a se posicionar entre o Ocidente e o Oriente, mas cuja sobrevivência depende da capacidade de se estabelecer como ponte entre os dois. Reafirma sua posição de que a Ucrânia não deveria ingressar na Otan, e alerta Putin sobre os riscos de uma política de imposição militar produzirem outra Guerra Fria. “Eu assisti a quatro guerras se iniciarem com grande entusiasmo e apoio popular. Em todas elas nós não sabíamos como acabariam e de três delas retiramo-nos unilateralmente. O teste da política é como ela termina, não como começa.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O efeito borboleta”

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