Política
O desastre em Petrópolis é fruto de negligência e de incentivo a um desenvolvimento predatório
As cenas de moradores escavando com as próprias mãos as áreas atingidas desnudam o abandono a que estão submetidos desde sempre


Cento e oitenta e dois mortos, 89 desaparecidos. Uma semana após o temporal que arrasou Petrópolis, o Corpo de Bombeiros ainda utilizava drones e mobilizava equipes terrestres para fazer uma varredura nos rios da estância turística, na tentativa de localizar vítimas da tragédia, enquanto a população enterrava seus mortos ou procurava reaver pertences da lama. As cenas de moradores escavando com as próprias mãos as áreas atingidas por deslizamentos de terra, a despeito dos alertas de novas tempestades, desnudam o abandono a que estão submetidos desde sempre. Há exatos 11 anos, a cidade, planejada e fundada em 1843 para abrigar as férias de veraneio de Dom Pedro II e sua corte, havia sido uma das mais atingidas pelas torrentes que devastaram a Região Serrana do Rio de Janeiro, deixando o tenebroso saldo de 918 mortos no mais letal desastre natural do século XXI no País. Infelizmente, entre uma tragédia e outra, nada mudou.
Em 2011, as enxurradas e os desabamentos mataram 71 moradores em Petrópolis, menos da metade das vítimas já confirmadas na tragédia de 15 de fevereiro deste ano. Apesar dos diversos fundos e planos ambientais e urbanísticos criados pelas três esferas de governo após aquele episódio, e do longo tempo para cumprir as promessas feitas por políticos e empresários no calor do momento, a cidade continuou a ser vitimada pela ocupação desordenada de suas íngremes encostas, fruto da desigualdade de renda e de uma crise habitacional que extrapola os limites municipais. De acordo com o Plano Municipal de Redução de Risco, apresentado pela prefeitura em 2017, existem 234 áreas de risco alto ou muito alto em Petrópolis. Nelas estão localizadas cerca de 20 mil moradias e o estudo recomenda a remoção – jamais realizada – de 7 mil famílias.
OS CONDOMÍNIOS DE ALTO PADRÃO SE MULTIPLICAM NA REGIÃO. AOS TRABALHADORES, RESTAM AS PERIGOSAS ENCOSTAS
O temporal da semana passada foi o maior registrado em Petrópolis desde 1932, quando as medições começaram a ser feitas. Em apenas seis horas, foram 260 milímetros de chuva, quantidade maior do que a média prevista para todo o mês de fevereiro. Os locais atingidos não foram os mesmos de 11 anos atrás. Naquela ocasião, o epicentro da tragédia foi o distrito Vale do Cuiabá, que concentrou a maioria das vítimas fatais. Desta vez, foram 89 áreas atingidas por enchentes e enxurradas, inclusive o Centro Histórico e o turístico bairro Quitandinha, na Zona Sul da cidade. Ocorreram ainda 26 deslizamentos de grande porte. O ponto mais atingido pelos deslocamentos de terra foi o bairro Alto da Serra, onde, na localidade conhecida como Morro da Oficina, uma das áreas de alto risco elencadas no plano municipal, ao menos 50 casas foram arrastadas, segundo a Defesa Civil.
É evidente o papel das mudanças climáticas na ocorrência de desastres naturais que serão cada vez mais frequentes, mas não dá para culpar apenas o clima pelo que aconteceu em Petrópolis e em outros pontos do País. “As mudanças climáticas não são novidade. A temperatura da Terra aumentou em 1 grau e vários estudos comprovam que isso tende a se agravar nas próximas décadas. Já estamos vivendo as emergências climáticas, as consequências do aquecimento global”, observa o ambientalista Pedro Eduardo Graça Aranha, articulador da Coalizão pelo Clima. Ele lembra que a Área de Proteção Ambiental de Petrópolis, criada em 1982, foi a primeira unidade de conservação de uso sustentável do Brasil e por muitos anos considerada um modelo de gestão participativa. “Se o seu plano diretor fosse respeitado, não teríamos essa sucessão de tragédias. Claro, poderíamos ter vítimas, mas jamais um desastre dessa proporção. O problema é que os últimos prefeitos tratam a APA como um entrave ao desenvolvimento.”
Aranha explica a influência criminosa da especulação imobiliária em Petrópolis: “Houve uma multiplicação de megacondomínios em áreas mais ricas como Itaipava, Correia e Nogueira. Evidentemente, os operários envolvidos nessas obras, bem como os funcionários desses condomínios, precisam morar em algum lugar não muito distante do local de trabalho. Esta é a origem das ocupações desordenadas em áreas de risco nas encostas”, diz. O fenômeno ganhou proporções avassaladoras a partir do fim dos anos 1990: “Foi quando os municípios da Região Serrana decidiram acabar com as áreas rurais e inaugurar condomínios, substituindo a cobrança do ITR pelo IPTU, que gera mais receitas para as prefeituras”.
Em 2017, o Plano Municipal de Redução de Risco recomendou a remoção, jamais realizada, de 7 mil famílias das íngremes encostas – Imagem: Tânia Rêgo/ABR e João Gabriel Alves/Controluce/AFP
A burocracia e a falta de vontade política impediram que os recursos destinados à Região Serrana do Rio após a tragédia de 2011 fossem adequadamente empenhados e utilizados. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, apenas metade dos 2,27 bilhões de reais disponibilizados na época para a contenção de encostas e prevenção de enchentes pelo então Ministério das Cidades foi efetivamente gasta pelas prefeituras da região. Já o governo do estado destinou há 11 anos 31,7 milhões de reais às prefeituras para projetos que incluíam a contenção de 95 encostas, sendo 12 delas consideradas áreas de alto risco em Petrópolis, além da implantação de um Sistema de Alerta e Alarme por Sirenes. No entanto, segundo o Portal da Transparência, somente 24% desse montante foi de fato utilizado. Indagado por CartaCapital sobre o destino dado às verbas recebidas pelo município, o prefeito Rubens Bomtempo, do PSB, que está no quarto mandato e cuja coligação governa a cidade desde 2001, não respondeu à reportagem até o fechamento desta edição.
As providências de Poder Público seguem à meia-boca também no quesito habitacional. A previsão era construir 7,2 mil moradias para o reassentamento de famílias em áreas vulneráveis espalhadas por toda a Região Serrana, mas somente 4,2 mil foram erguidas desde 2011. Em Petrópolis, a construção de casas para o reassentamento dos atingidos no Vale do Cuiabá foi interrompida em 2014 e somente vergonhosas 50 unidades modulares foram entregues até agora aos desabrigados de 2011. O perigo lá é o mesmo do Morro da Oficina. Segundo o Plano Municipal de Redução de Risco, em ambas as áreas “há adensamento populacional informal e verticalização das construções em expansões que acabam somente sendo delimitadas pelos afloramentos rochosos em áreas de alto risco”. No estudo da prefeitura, o terreno onde aconteceu a última tragédia é classificado no mais alto risco de deslizamento, com “encostas íngremes e constituídas predominantemente por solos superficiais ou rasos”. As moradias do local, acrescenta o documento, são “desprovidas de infraestrutura adequada” e “provocam excessivas alterações nas condições originais do terreno”. Meia centena delas não existe mais.
SOMENTE METADE DOS RECURSOS LIBERADOS PELA UNIÃO APÓS A TRAGÉDIA DE 2011 FOI DE FATO GASTA PELAS PREFEITURAS
Decidido a se mostrar presente aos olhos da população, o governador Cláudio Castro, candidato à reeleição pelo PL, esteve em Petrópolis no dia seguinte à tragédia e não poupou sequer o presidente Jair Bolsonaro, aliado de quem espera apoio na campanha eleitoral. O governo estadual atribuiu o absurdo atraso de mais de uma década na entrega de novas moradias às vítimas do Vale do Cuiabá a “interrupções no repasse do governo federal” que se agravaram “após a descontinuidade do Programa Minha Casa Minha Vida, a partir de 2018”. Após prometer a construção de 340 novas unidades habitacionais na cidade, Castro emendou no mesmo palavrório vazio de seus antecessores: “Teremos postura corajosa e desmedida. Unir uma tragédia histórica com um déficit que realmente existe causou este estrago todo. Que sirva de lição para que desta vez a gente haja diferente”.
Só faltou esclarecer por que, então, sua gestão gastou somente 47% do orçamento disponível para o Programa de Prevenção e Resposta a Desastres Naturais no ano passado. Dos 407,8 milhões de reais da dotação inicial, apenas 192,8 milhões foram empenhados, segundo dados do Portal da Transparência. “Não se resolvem 20, 30, 40 anos em um ano”, despistou o governador, que tomou posse em caráter definitivo em 1º de maio do ano passado, após o impeachment de Wilson Witzel. De 2020 para cá, os orçamentos das secretarias de Defesa Civil e Meio Ambiente sofreram uma drástica redução (gráfico à pág. 16),
sacrificando boa parte das ações destinadas à prevenção de desastres. Dentro do programa de Prevenção de Risco e Recuperação das Áreas Atingidas, a ação “Gestão de Risco e Reparação de Acidentes e Catástrofes” teve uma redução de verba de 20,1% em 2022. Já a ação “Recuperação em Emergências e Desastres” sofreu um corte de 28%, enquanto a “Gestão e Prevenção de Risco Geológico” foi praticamente extinguida, pois houve redução de 99,95% dos recursos.
Sem explicar o corte de verbas para a prevenção de desastres, o governador Cláudio Castro ataca o deputado Marcelo Freixo, seu rival nas eleições – Imagem: Redes sociais e Rogério Santana/GOVRJ
Vindo da viagem à Rússia e Hungria, Bolsonaro só apareceu em Petrópolis na sexta-feira 18, três dias após a tragédia, acompanhado por Castro e pelos ministros Braga Netto (Defesa), João Roma (Cidades), Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Augusto Heleno (GSI), além do presidente da Caixa, Pedro Guimarães, e de parlamentares da base bolsonarista. Após um sobrevoo de helicóptero, no qual disse ter avistado “uma imagem de quase guerra”, o presidente negou a parcela de culpa do governo federal nas falhas de prevenção de desastres naturais em áreas densamente povoadas. “A população tem razão em criticar, mas aqui é uma região que, infelizmente, tivemos outras tragédias antes. Pedimos a Deus que não ocorram mais”, disse. O governo federal parece mesmo confiar na Providência Divina, pois liberou apenas 2 milhões de reais à prefeitura para ações emergenciais, quantia irrisória diante das necessidades da cidade.
Ex-ministro do Meio Ambiente, o deputado estadual Carlos Minc, do PSB, aprovou em 2010 uma lei que determina a destinação de ao menos 10% das novas unidades construídas em conjuntos habitacionais do Rio para o reassentamento de famílias que moram em encostas, margens de rios e demais áreas de risco. Após a tragédia de 2011, Minc, então secretário do Ambiente do Rio, esteve à frente de duas iniciativas para prevenir novos desastres, o Mapeamento de Risco e o Plano de Contingência. “Vários prefeitos não cumpriram as restrições e continuaram a licenciar obras e estradas em áreas que o mapeamento vedava expressamente”, lamenta. “Por isso, aprovei uma nova lei em 2013 determinando que as vedações e determinações do documento estivessem obrigatoriamente inscritas nas leis orgânicas dos municípios e também nas leis de uso do solo.”
Fonte: LOA 2010 a 2022
Ainda assim muito pouco foi feito, como prova agora Petrópolis. “Há que se cultivar uma cultura de prevenção de catástrofes que ainda não temos no Brasil. É preciso ter planejamento e tratar dos passivos, avançar com o reflorestamento de encostas e matas ciliares e ampliar programas habitacionais em áreas planas com infraestrutura”, diz o parlamentar.
Além da falta de planejamento e do descumprimento de regras, o descaso do Poder Público em todos os níveis é a marca de mais uma tragédia em Petrópolis. Já entraram para a história as imagens de moradores cavando a lama com as mãos, para tentar encontrar parentes e vizinhos. “Não sei qual é o critério dos bombeiros. Eles estão atuando no comecinho do morro, mas aqui em cima ainda não apareceu nenhum”, disse um dos voluntários a um telejornal local, horas após o deslizamento no Morro da Oficina. Por sua vez, o comandante-geral do Corpo de Bombeiros e secretário estadual de Defesa Civil, Leandro Monteiro, reclamou publicamente do prefeito Bomtempo por este ter “se negado a determinar o fechamento de seis vias de acesso ao município” e facilitar o acesso de “turistas do desastre” ao local da tragédia.
Em meio à dor de centenas de famílias, o bate-boca público entre políticos locais ficou ainda mais constrangedor quando Bomtempo acusou o secretário estadual de Desenvolvimento Social, Matheus Quintal, a quem chamou de “agente do caos”, de explorar o episódio politicamente: “A secretaria está distribuindo benefícios e chamando a população para se cadastrar no aluguel social em uma escola há poucos metros do local da tragédia. Está gerando tumulto e atrapalhando as buscas”, disse. Já Quintal, nas redes sociais, afirmou que seu compromisso de “mitigar as dificuldades de quem precisa é diário e permanente”. Detalhe: os dois contendores se enfrentaram nas últimas eleições municipais e Quintal, que é do Republicanos e aliado de Castro, almeja ser novamente candidato em 2024.
PETRÓPOLIS NÃO É UM CASO ISOLADO: MAIS DE 8,2 MILHÕES DE BRASILEIROS VIVEM EM ÁREAS DE RISCO, ESTIMOU O IBGE EM 2018
Em meio à briga sobrou até para o deputado Marcelo Freixo, pré-candidato ao governo do Rio pelo PSB, que visitou Petrópolis após a tragédia e despertou a ira de Castro, seu provável principal adversário em outubro. Nas redes sociais, o governador disse que Freixo, a quem chamou de “Zé do Caixão da política”, é “o maior oportunista que conheceu”. O deputado retrucou: “É uma pena que neste momento em que a população tanto precisa tenhamos um governador tão despreparado e desequilibrado”.
Petrópolis está longe, porém, de ser um caso isolado. Em 2018, o IBGE estimou que 8,27 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco, espalhadas por 872 municípios do País. A Região Sudeste concentrava mais da metade desse contingente, com destaque para São Paulo e Minas Gerais, com 1,52 milhão e 1,37 milhão de moradores em domicílios considerados inseguros. Salvador era a capital com o maior porcentual de habitantes em situação de risco: 1,2 milhão de cidadãos, ou 45,5% da sua população.
“Lamentavelmente, o risco de novas tragédias existe no Brasil inteiro. O próximo desastre pode ocorrer na periferia do Recife, na Região Metropolitana de São Paulo, em qualquer local onde existirem pobres morando em áreas de várzea, sujeitas a enchentes, ou em encostas, com risco de deslizamentos de terra”, lamenta Rubens Born, especialista em Políticas de Sustentabilidade da Fundação Esquel. “São décadas de omissão em relação às políticas habitacionais, de saneamento básico e de proteção ambiental.”
As inundações no sul da Bahia e no norte de Minas Gerais provam que o problema é generalizado. O próximo desastre pode ocorrer em qualquer centro urbano, lamenta o ambientalista Rubens Born – Imagem: Fernando Vivas/GOVBA e Pedro Vilela/Getty Images/AFP
De fato, as deficiências nessas áreas costumam estar conjugadas. A pesquisa do IBGE em 2018 revelou que 26,1% da população em áreas de risco não tinha acesso a redes coletoras de esgoto ou a fossas sépticas, porcentual que atingia impressionantes 70,7% em estados do Norte. Na região, 14,1% dos moradores de habitações inseguras também não contavam com destinação adequada do lixo doméstico. No Nordeste, o porcentual era de 6,6% e nas demais regiões, inferior a 3%.
Ninguém mora às margens de rios ou em encostas porque quer, e sim por falta de opções, acrescenta Aranha, da Coalização pelo Clima. O ambientalista lembra que o Poder Público induz o adensamento populacional em determinadas regiões, ao estimular atividades econômicas sem se preocupar em criar condições adequadas de moradia para os trabalhadores. “Hoje, os maiores bolsões de pobreza do Rio de Janeiro estão na Zona Oeste, no entorno do Distrito Industrial de Santa Cruz. Até meados dos anos 1970, boa parte das fábricas de lá ficava nos bairros do Jacaré, São Cristóvão e Bonsucesso, estimulando a ocupação dos morros. A Favela de Manguinhos, por sinal, tem esse nome porque foi erguida no entorno da Refinaria de Manguinhos, para abrigar os operários que não tinham condições de viver em um lugar melhor”, relembra. “Precisamos pensar em um novo modelo de desenvolvimento, no qual a ecologia seja o centro da discussão política. Caso contrário, estaremos fadados a ver a repetição dessas tragédias. Por isso é tão importante construir planos estratégicos de adaptação climática.”
A avaliação é compartilhada por Born. “O Poder Público só costuma agir quando a tragédia está consumada e, ainda assim, de forma insuficiente”, avalia. “Cabe à sociedade civil pressionar os governos. Por vezes, damos muita atenção a temas como Agenda Verde, preservação da Amazônia, e nos esquecemos de que também precisamos preservar mananciais, topos de morros e várzeas nos centros urbanos.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O ceu é inocente”
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