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Putin explora as debilidades do Ocidente e o desfecho continua imprevisível

A UE tem um calcanhar de aquiles evidente: cerca de 40% do gás consumido no continente é distribuído pelos russos, dependência que tende a aumentar

Putin explora as debilidades do Ocidente e o desfecho continua imprevisível
Putin explora as debilidades do Ocidente e o desfecho continua imprevisível
Imagem: Ministério da Defesa/Rússia
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Pavlo Sadhoka acredita ou ao menos deseja do fundo do coração acreditar nas boas notícias da terça-feira 15. Sem olhar uma única vez para a tela de tevê que suga a atenção dos funcionários e frequentadores do café – àquela altura o Manchester City encaminhava a goleada de 5 a 0 no Sporting –, ele interrompe a observação de que ­Vladimir Putin é inconfiável, sorve a xícara lentamente e prossegue: “Foi um alívio. Acho que o fato de todos, a Europa, os Estados Unidos, a Otan, terem se unido contra a Rússia deu resultado”. Presidente da associação de migrantes ucranianos em Portugal, pequena comunidade de 50 mil compatriotas de um total de quase 2 milhões espalhados pelo resto do continente, Sadhoka atravessou o dia na expectativa de uma invasão iminente da sua terra natal. Pensava nas dezenas de pedidos de socorro de anônimos enviados diariamente à associação, mas também nos pais, que ainda vivem na Ucrânia. “Tracei um plano de fuga. Minha ideia era buscá-los na fronteira com a Polônia. A família da minha mulher, portuguesa, se ofereceu para abrigá-los.” E agora? “Vamos esperar mais um pouco.”

*A Rússia anexou a Crimeia em 2014 Alguns locais na Bielorrússia são aproximados
Fonte: Rochan Consulting, Maxar/BBC

A mudança de humor deve-se ao anúncio da retirada de parte das tropas russas da fronteira com a Ucrânia, embora o Kremlin não tenha especificado e o Ocidente não tenha sido capaz de estimar a relevância do movimento. O recuo, recebido com “otimismo cauteloso” pelo secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, manteve, no entanto, a esperança de uma solução diplomática para o impasse. Nem os ataques hackers a bancos ucranianos na mesma terça tiveram o poder de azedar o clima de boa vontade que imperava nos salões da diplomacia internacional. O anticlímax, neste caso, agradou à audiência. Isso não significa que o drama tenha terminado. Nas últimas três semanas, as forças armadas de Putin empreenderam uma marcha impressionante pelas estepes e tundras. Soldados, tanques, blindados e aviões cruzaram milhares de quilômetros, alguns deslocados da extremidade leste do país, até as fronteiras ucranianas. Segundo os especialistas, entre 100 mil e 130 mil militares do antigo “Exército Vermelho”, equivalente a 60% das forças terrestres, estacionaram nas portas do país vizinho, cuja relação de amor e ódio com Moscou atravessa os séculos e se intensificou a partir de 2014. Quantos voltaram ou voltarão para casa nos próximos dias? Só Moscou pode dizer.

Putin tem tempo. Biden, problemas internos mais imediatos – Imagem: Saul Loeb/AFP e Kremlin/Rússia

Não está claro se Putin pretende ou pretendia de fato começar uma guerra com a Ucrânia. E se o Ocidente terá capacidade de dissuadi-lo por meio de sanções econômicas ou envio de armamentos a Kiev. O risco de um confronto de grandes proporções às portas da Europa levou a mídia ocidental, talvez com certo exagero, a descrever o impasse como o mais grave desde a crise dos mísseis de 1962, no auge da Guerra Fria. Os serviços de inteligência dos Estados Unidos fizeram circular a versão de que a invasão da Ucrânia tinha até data marcada, quarta-feira 16, motivo da agonia e do posterior “alívio” de Sadhoka e seus compatriotas. Diante da “informação”, o presidente norte-americano, Joe Biden, ameaçou “reagir sem hesitação” caso as tropas russas cruzassem a fronteira. Amedrontado, na versão de alguns, maquiavélico, segundo outros, Putin preferiu então mover as peças de modo a manter aberto o jogo diplomático sem produzir uma mudança substancial no tabuleiro. Os russos negam de coturnos juntos o intuito de iniciar uma guerra e justificam a longa marcha das tropas ora como parte de exercícios conjuntos com a aliada Bielorrússia, ora como um movimento de prevenção contra possíveis agressões da Ucrânia. De forma enigmática e com um estilo panfletário que lembra os camaradas redatores do lado de lá do Muro de Berlim, Maria Zakharova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo, ironizou a “histeria” do Ocidente em uma sucinta mensagem no ­Facebook: “15 de fevereiro de 2002 ficará na história como o dia do fracasso da guerra de propaganda ocidental. Envergonhado e destruído sem disparar um tiro”.

Macron e Scholz parecem peças decorativas na mesa interminável. No outro canto, o presidente russo pode fazer de conta que mal escuta – Imagem: Kremlin/Rússia

Zakharova não chega, porém, aos pés dos sequazes de Jair Bolsonaro, como se lerá na reportagem de André Barrocal à página 18. Segundo a rapaziada, bastou um gesto do ex-capitão, a distância, a simples decisão de embarcar em voo da FAB rumo a Moscou, para tocar os corações e evitar o pior. Aplausos? Seriam poucos. Os asseclas sugerem um Prêmio Nobel da Paz. Infelizmente, diria Garrincha, seria preciso antes combinar não só com os russos. Incapaz de perceber e reconhecer a grandeza do “estadista” brasileiro, o resto do mundo estava mais preocupado em interpretar as reais intenções do recuo de Putin, caso “recuo” seja o termo apropriado para explicar os acontecimentos da semana.

O AVANÇO DA OTAN RUMO AO LESTE EUROPEU É PAULATINO, MAS NÃO UNÂNIME ENTRE OS ASSOCIADOS

Moscou intensificou as manobras militares na fronteira, em tese, para marcar seu incômodo com a provável adesão da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental criada ao fim da Segunda Guerra Mundial. Apesar de controversa entre os associados, a expansão da Otan para o Leste europeu tem sido ininterrupta desde a queda do Muro do Berlim. A incorporação da Polônia, Lituânia, Estônia e Bulgária, entre outros, empurrou a aliança para os limites da Federação Russa. Diplomatas ocidentais costumam, inclusive, esgrimir esse argumento para pôr em dúvida as razões aventadas por Moscou: se outros países na fronteira integram a Otan, qual seria o problema da adesão da Ucrânia, que, ao contrário dos demais, não foi convidada, mas se ofereceu para participar da aliança?

A crise dos mísseis de 1962 durou 13 dias. No fim, Kruschev e Kennedy, à falta de celulares, criaram uma linha direta de comunicação entre Washington e Moscou – Imagem: Arquivo Nacional/EUA e Nikishov/Sputnik/AFP

Os russos, provavelmente, responderiam com questões históricas, geográficas, conjunturais e de segurança. A Ucrânia, para começar, se tornaria o país com a maior extensão de fronteira com a Rússia a integrar a Otan. Para expressar o incômodo, Moscou relembra o episódio da crise dos mísseis nos anos 60 do século passado. Três anos depois da revolução, a Cuba de Fidel Castro aceitou abrigar ogivas soviéticas a uma distância de 140 quilômetros da Flórida – em resposta à instalação de armas nucleares dos EUA na Turquia. Enquanto os navios da URSS singravam os oceanos em direção a Havana, Washington ameaçava invadir a ilha caribenha e desencadear um conflito atômico. Durante 13 dias, a espécie humana sentiu na pele o risco de desaparecer da face da Terra, sem tempo de perdoar e ser perdoada, até que um acordo entre as potências desanuviou o horizonte e, na falta de aparelhos celulares, desaguou na instalação de uma linha de comunicação direta entre os gabinetes de John Kennedy, em Washington, e Nikita Kruchev, em Moscou.

MOSCOU DESESTABILIZA A UCRÂNIA, A ÚNICA A SOFRER OS EFEITOS ECONÔMICOS DO IMPASSE NA DIPLOMACIA

Os tempos são outros, Putin sabe bem e explora as circunstâncias na medida do possível. Na avaliação do Kremlin, o Ocidente está enfraquecido. Biden pode até falar grosso, mas os assuntos internos – inflação em alta, popularidade em queda e recusa de parte da população a se vacinar – desaconselham qualquer investida no front externo, principalmente em um conflito que afeta de forma circunstancial o país e diz pouco, ou nada, aos eleitores. A União Europeia tem um calcanhar de aquiles evidente: cerca de 40% do gás consumido no continente é distribuído pela Rússia, dependência que tende a aumentar se o conflito na Ucrânia não atrasar a inauguração do gasoduto Nord Stream 2, que ligará o país à Alemanha. A Otan, embora tenha a liberdade de enviar armas, está impedida de intervir diretamente por uma questão legal: a Ucrânia deseja, mas ainda não integra a aliança. As amarras dos negociadores ocidentais ficaram estampadas nas fotos do presidente francês, Emmanuel Macron, e do chanceler alemão, Olaf Scholz, miniaturas na interminável e imponente mesa, a uma distância “segura” de Putin, conforme as regras de isolamento social estabelecidas pelo protocolo russo em tempos de pandemia. Se a mesa traduz a distância entre as posições em jogo, os diplomatas têm um monumental trabalho pela frente.

Os ucranianos prometem defender o país a todo custo. O migrante Sadhoka diz que Putin visa enfraquecer a Ucrânia para “comprá-la a preço baixo” – Imagem: Arquivo pessoal, Sergei Supinsky/AFP e NurPhoto/AFP

Esforços diplomáticos à parte, o aparente tema central do conflito continua insolúvel. Washington e Bruxelas entendem que não cabe a Moscou interferir em decisões soberanas de outra nação. A Ucrânia mantém o desejo de aderir à Otan, apesar do deslize do embaixador em Londres, que admitiu a possibilidade de desistência e em seguida voltou atrás. “Sim, não desistimos. É uma garantia à nossa segurança”, afirmou o presidente Volodymyr Zelenski, depois de uma reunião com Scholz em Kiev. Zelenski, comediante eleito na onda de aversão à política tradicional, só não diz por quanto tempo o país resiste ao impasse nas negociações. Na situação atual, a Ucrânia é o único lado prejudicado. A ameaça de guerra em seu território afeta a economia. O governo lançou um pacote para estimular as companhias aéreas a manter as linhas, enquanto os EUA e as nações europeias recomendam às respectivas populações que evitem viajar ao país.

NA NOVA GUERRA FRIA, O OCIDENTE E OS EUA ESTÃO EM CLARA DESVANTAGEM

Putin, ao contrário, tem todo o tempo do mundo se quiser evitar a guerra e encontrar ou aceitar uma saída honrosa coletiva. Sem a expressa recusa da Otan em admitir a Ucrânia, o que mais poderia ser levado àquela interminável mesa do Kremlin? Haveria a possibilidade de revisão de pontos do Acordo de Minsk, firmado em setembro de 2014 sob o pretexto de colocar um fim aos confrontos na região de Donbas, a leste da Ucrânia? O tratado nasceu torto e natimorto. O objetivo era encerrar um ano turbulento, iniciado pela anexação da Crimeia pela Rússia, em fevereiro, seguida de uma resposta popular, o desfecho da Revolução Maidan, que destituiu Viktor Yakunovich, presidente pró-Moscou, e levou ao poder uma geração ucraniana inclinada a abraçar a União Europeia. Para o Kremlin, a revolução foi arquitetada pelos norte-americanos. Para os ucranianos, os russos, insatisfeitos com a perda de influência, estimularam o separatismo em Donbas, onde brotaram duas áreas autônomas, as autodenominadas República Popular de Donetsk e República Popular de Lugansk. O acordo de Minsk impede, entre outras determinações, o reconhecimento pela Rússia da independência das duas repúblicas. O Kremlin reafirma o compromisso de obedecer às regras, mas, na terça-feira 15, a Duma, o Parlamento russo, aprovou uma moção a favor da autonomia das repúblicas.

Jinping lidera uma mudança profunda – Imagem: Departamento de Estados/EUA

Ao longo de oito anos, os separatistas pró-Rússia e os nacionalistas ucranianos ignoraram os seguidos armistícios e fizeram de Donbas um pequeno experimento de guerra. Confrontos paramilitares provocaram ao menos 14 mil mortes, além de migrações forçadas e destruição. Justamente nos limites de Donbas e da Ucrânia “europeia” a tensão floresce em toda a sua magnitude. Do lado ucraniano, crianças e velhos, principalmente senhoras, apelidadas de “Esquadrão das Babushkas”, recebem armas e são treinados por nacionalistas do Azov, movimento ultradireitista que abriga neonazistas e supremacistas brancos. “Não concordo com a ideologia deles, me interessa defender a pátria”, afirmou ao canal de tevê Al Jazeera Valentyna Konstantinovska, de 79 anos, antes de disparar o rifle. “Amo minha cidade, não vou embora. Putin não pode nos assustar. Sim, é aterrorizante, mas vamos defender a nossa Ucrânia até o fim.” A mídia e a diplomacia russas exploram a influência do Azov nas organizações paramilitares e a tentativa do movimento de conquistar poder político no país. “Moscou classifica qualquer ucraniano crítico como fascista ou nazi”, diz Sadhoka. “É um subterfúgio. A vida melhorou na Ucrânia após a revolução, houve crescimento econômico, mais oportunidades de trabalho, de lazer. Putin teme que o progresso ucraniano influencie outros países sob seu domínio a se rebelarem.” Em resposta às provocações russas, os ucranianos chamam Putin de terrorista. “Ele provoca terror”, justifica Sadhoka. “O Ocidente precisa entender que, enquanto ele estiver no poder, estaremos ameaçados.”

Em certa medida, as tropas russas estacionadas na fronteira com a Ucrânia parecem delinear uma nova e imaginária Cortina de Ferro. Longe de repetir a batalha capitalismo versus comunismo do pós-Guerra, a divisão representa uma disputa muito mais profunda e, sobretudo, desvantajosa ao Ocidente e ao Império norte-americano, como ressalta Luiz Gonzaga Belluzzo à página 17. Enquanto os analistas passavam o dia a contar o número de soldados e tanques russos a ziguezaguear pelo território, Putin e Xi Jinping divulgavam uma declaração conjunta que, na análise do ex-chanceler Celso Amorim, em artigo publicado na edição passada, “expressa, com uma clareza nunca antes alcançada, o fim da era da hegemonia quase absoluta dos Estados Unidos sobre os destinos do mundo”. Uma nova “Guerra Fria” se desenha e Putin tenta se firmar como um general da linha de frente. O desfecho da crise na Ucrânia vai definir a velocidade e a trajetória do pêndulo. •


CINCO PERGUNTAS SOBRE A CRISE

THE OBSERVER. O que motiva o conflito
por Simon Tisdall

Por que a Rússia ameaça invadir a Ucrânia?
Porta-vozes da Rússia negam diariamente qualquer intenção de invadir o país. O mesmo fez o presidente russo, Vladimir Putin, quando se encontrou com o colega francês, Emmanuel Macron, e quando falou por telefone com o presidente norte-americano, Joe Biden. Há dois problemas nisso. Primeiro, dado o relacionamento retórico de Putin com a verdade, poucos governos ocidentais acreditam nas negativas. Segundo, Putin não explicou por que, se suas intenções são pacíficas, mais da metade das forças armadas russas, incluídos 130 mil soldados, está aglomerada nas fronteiras da Ucrânia. Pode ser um blefe, mas quem apostaria nisso?

Então, o que move Putin?
Há diversas teorias. Putin almejaria reconstruir uma esfera de influência russa no Leste da Europa, principalmente envolvendo ex-repúblicas soviéticas como as hoje independentes Estônia, Letônia, Lituânia, Bielorrússia, ­Geórgia e Ucrânia. Ele lamentou com frequência sua “perda” depois do desmoronamento da União Soviética. Putin também pode querer demonstrar para o Ocidente (e os russos) que o país ainda é uma superpotência, mesmo que pela maioria das medidas (fora estoques de armas nucleares e geografia) seja uma potência média fraquejante.

Por que a Ucrânia?
Putin teme que a Ucrânia, com sua importância estratégica, ocupando o flanco sudoeste da Rússia, esteja se assimilando ao Ocidente. Ele é contra sua crescente aproximação com a aliança militar ocidental, a Otan. Ele também se opõe ao desenvolvimento de laços entre Kiev e a União Europeia. Pior ainda, do ponto de vista de Putin, a Ucrânia é uma democracia, com livre expressão e mídia livre, e elege livremente seus líderes. Na prática, os russos não desfrutam dessas liberdades – se eles seguissem o exemplo da Ucrânia, Putin não duraria muito. De modo mais geral, Putin é um revisionista saudoso que vê a Ucrânia como parte integral da Rússia histórica, e sua perda é um símbolo da derrota russa na Guerra Fria.

Por que agora?
Putin pode sentir fraqueza no Ocidente. A Otan foi humilhada no ano passado no Afeganistão e Joe Biden, que fez campanha pelo fim das guerras e o não envolvimento em novas, redirecionou o enfoque da política externa e dos recursos militares para a China, e não Europa. Também se acredita que Putin precise de uma grande vitória para reforçar seu apoio interno, validar suas políticas antiocidentais, desculpar a corrupção galopante e a cleptomania do regime e justificar as dificuldades que os russos suportam em consequência das sanções ocidentais impostas depois de seu primeiro ataque à Ucrânia, em 2014. Foi quando ele anexou a Crimeia e assumiu de fato o controle da região de Donbas, no leste.

Quais são as exigências de Putin?
Para (talvez) acabar com o impasse, Putin quer que a Otan prometa não aceitar a Ucrânia (ou a Geórgia ou a Moldávia) como integrantes. Ele quer que a aliança se retire de países na “linha de frente”, como Polônia, Romênia e Bulgária, ex-membros do finado Pacto de Varsóvia. Ele quer que Kiev aceite a situação de autonomia para a região de Donbas e retire suas reivindicações sobre a Crimeia (como parte dos chamados acordos de Minsk). Ele quer limitar ou conter as mobilizações no Leste e no Sul da Europa de novos mísseis de médio alcance dos Estados Unidos. Ainda mais ambicioso, ele quer redesenhar a “arquitetura de segurança” europeia, restabelecer a influência russa e ampliar seu alcance geopolítico. Os EUA rejeitam a maior parte disso. Daí a crise atual.


GUERRA? QUE GUERRA?

THE OBSERVER. Em Kiev, a população toca a vida
por Shaun Walker, em Kiev

Em Kiev, a população toca a vida e tenta esquecer a ameaça que ronda as fronteiras – Imagem: Ali Atmaca/Anadolu/AFP

Enquanto chegava a notícia da última avaliação sombria da Casa Branca sobre a Ucrânia, no fim da noite da sexta-feira 11 em Kiev, os bares e restaurantes estavam cheios como em qualquer noite de sexta, o clima continuava alegre e qualquer cidadão sem acesso ao ­Twitter teria dificuldade para notar alguma sensação de perigo.

Enquanto as autoridades dos Estados Unidos e os jornalistas em Washington informados por elas previam uma campanha “horrível, sangrenta”, a ser lançada iminentemente contra a Ucrânia, ninguém, exceto os jornalistas, prestava muita atenção ao que, para muitos em Kiev, parece apenas o último de uma série de informativos apocalípticos.

Enquanto os integrantes de grupos de pensadores em Washington escreviam sobre uma campanha impiedosa a ser lançada no último fim de semana, que privaria a Ucrânia de energia elétrica e aquecimento e derrubaria o alto-comando do Exército, as ruas de Kiev, onde nevava levemente, pareciam uma rea­lidade paralela.

É claro que sob a calma superficial muitos ucranianos fazem planos de contingência, alguns para evitar uma invasão, outros para fugir para lugares mais seguros. É impossível comprar um gerador de eletricidade na cidade, e muitos discutem o que farão se o pior acontecer.

Porões, estações de metrô e até clubes noturnos foram cogitados como possíveis abrigos antibomba, no caso de um ataque aéreo russo.

No sábado 12, milhares de cidadãos se reuniram no centro de Kiev para uma “marcha da unidade”, acenando bandeiras ucranianas e faixas que diziam “Vamos resistir” e “Invasores têm de morrer”. Mas a multidão de vários milhares era pequena pelos padrões de uma cidade acostumada a protestos gigantescos, e reflete um cansaço da constante e perturbadora ameaça de guerra.

“Putin está cometendo um erro enorme, se acha que conseguirá destruir a Ucrânia”, disse Andriy Tyshko, que marchava com sua filha bebê. ­Iryna Kuprienko, que passeava perto do protesto, disse que não entendia a agitação. “Sabemos que Putin é capaz de fazer coisas terríveis, mas com certeza não é louco o bastante para bombardear Kiev.”

Enquanto mais embaixadas anunciavam a evacuação da maior parte do pessoal diplomático e diziam a seus cidadãos que deviam partir imediatamente ou se preparar para ficar emperrados, a tensão crescente fica mais difícil de ignorar. Os cidadãos norte-americanos em Kiev receberam ligações na sexta à noite de funcionários consulares preocupados, dizendo-lhes para fazer planos para deixar a cidade o mais cedo possível;

Mas, para muitos habitantes, a ideia de uma invasão completa continua distante e implausível. Muitos ucranianos, incluído o presidente, dizem que estão cientes do risco que a Rússia representa, mas não acreditam na insistência norte-americana sobre a amea­ça iminente. “Estou começando a ficar muito chateado com isso”, disse um ex-deputado ucraniano, que pediu para não ser identificado. “Sou muito pró-Ocidente, mas o modo como chega essa notícia da invasão me lembra (os rumores não verificados) de canais russos no Telegram, sobre fontes não identificadas e informação de bastidores. A histeria da mídia é extremamente perturbadora, e você começa a perder a confiança no governo, que está apenas dizendo para mantermos a calma.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O xadrez de Putin”

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