Mundo
Entre ficções e contradições, o Brasil ganha com a visita de Bolsonaro a Putin
O presidente russo é, no momento, o líder que impede o absoluto isolamento do Brasil


Petrópolis, palco de um dilúvio na terça-feira 15 com mais de cem vítimas, foi fundada em 1843 por D. Pedro II, primeiro chefe de Estado brasileiro a visitar a Rússia. O monarca escrevera umas cartas a figurões russos ao longo do reinado. Em 2017, o presidente de lá, Vladimir Putin, deu cinco delas a Michel Temer, durante uma visita do dito “pacificador”, compradas em um leilão em Nova York. Agora elas estão no Museu Imperial de Petrópolis. “Meus pêsames”, disse Putin na quarta-feira 16 sobre a tragédia na cidade, ao lado de Jair Bolsonaro.
Antes de entrar no Kremlin naquele dia, o ex-capitão homenageara, oh, ironia!, um memorial ao Soldado Desconhecido, um pracinha comunista, pois das tropas soviéticas de Joseph Stalin em luta com os nazistas na Segunda Guerra Mundial. “Soldado é simplesmente soldado”, justificar-se-ia o visitante. Ter evitado uma nova guerra foi uma das ficções lançadas na web pela máquina bolsonarista de mentiras, a propósito da coincidência entre a redução da presença militar russa na fronteira com a Ucrânia e a chegada de Bolsonaro em Moscou.
O ex-capitão ficou confinado em um hotel até se reunir com Putin, uma exigência local, em razão da Covid-19. Se aqui Bolsonaro zomba de máscaras e vacinas (“salva” vidas no exterior, no Brasil manda as pessoas ao matadouro), lá seguiu o protocolo sanitário e submeteu-se a testes de PCR. Tudo para sentar-se perto de Putin, diferentemente da distância vista entre o russo e os líderes de Alemanha, Olaf Scholz, e França, Emannuel Macron, que haviam ido ao Kremlin separadamente dias antes e rejeitado as exigências.
“Somos solidários à Rússia”, disse Bolsonaro a Putin. Foi uma tomada de posição contra a Ucrânia, com quem o Brasil acaba de completar 30 anos de relações diplomáticas? Pareceu mais solidariedade contra os Estados Unidos de Joe Biden e a Europa ocidental, antagonistas do líder russo como o são de Bolsonaro. “A leitura que eu tenho do presidente Putin é que ele é uma pessoa também que busca a paz”, comentou o brasileiro, na volta do Kremlin ao hotel.
CELSO AMORIM: “A VIAGEM CERTA, NO MOMENTO CERTO, COM A PESSOA ERRADA”
Enquanto estavam juntos, Putin ressaltou que o Brasil é o principal parceiro comercial da Rússia na América Latina. O fluxo comercial bilateral é, porém, pequeno: 7,3 bilhões de dólares em 2021. Daqui para lá (0,5% das nossas exportações), vão soja e carne, principalmente. De lá para cá (2,5% das nossas importações), vem sobretudo adubo. O russo citou ainda a parceria nos BRICS (bloco também formado por China, Índia e África do Sul), oportunidade de negócios em energia nuclear e busca comum por uma ordem internacional multipolar. Tradição na diplomacia brasileira, a visão multipolar, não centrada nos EUA, explica por que Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Temer estiveram com Putin quando no poder.
“O Bolsonaro fez por vias tortas a coisa certa. O Brasil ganha com essa viagem”, afirma Giorgio Romano Schutte, “mestre em Relações Internacionais e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, da Universidade Federal do ABC. Ganha em questões de longo prazo, como no debate sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, como se verá. “Há um outro mundo sendo construído, multipolar, e o Brasil faz parte desse mundo. A importância para Putin é o Brasil, não o Bolsonaro. É isso que as viúvas do tucanato não entendem. O Lula também teria ido lá agora, só que muito mais preparado e com uma agenda: G-20, BRICS…”
Ao Globo, Celso Amorim, ex-chanceler de Lula, disse ser “a viagem certa, no momento certo, com a pessoa errada, mas é a pessoa que tem né?” Curiosidade: o embaixador brasileiro em Moscou é Rodrigo Baena Soares, um dos porta-vozes de Lula no primeiro mandato, assessor especial no segundo e porta-voz de Dilma Rousseff por dois anos. Para outro diplomata ex-colaborador do PT, o ganho para o Brasil agora foi uma “consequência involuntária”, pois nossa política externa não tem rumo. A viagem à Rússia, prossegue, responde à necessidade eleitoral de Bolsonaro mostrar que não é isolado no mundo.
O que dirão os bolsonaristas? A Rússia, neoalida de Brasília, dá suporte ao governo de Maduro, na Venezuela, aquele que o Brasil sonha em derrubar – Imagem: Marcelo Furió García/Presidência da Venezuela
O ex-capitão embalou essa necessidade em uma capa ideológica. Em janeiro, definira Putin como “conservador”. Ao lado do russo, declarou: “Compartilhamos de valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família”. O governo Putin tem, de fato, traços obscurantistas. Há restrições ao debate de homossexualidade e de gênero, reflexos de uma aliança com a Igreja Ortodoxa, segundo Schutte. Curto-circuito à vista na cabeça dos bolsonaristas. Putin é grande aliado, inclusive com venda de material bélico, da Venezuela, cujo governo de Nicolás Maduro o ex-capitão não reconhece. A propósito, Bolsonaro saiu de Moscou e foi à Hungria encontrar na quinta-feira 17 o primeiro-ministro Viktor Orbán, de extrema-direita, que em abril enfrentará uma dura reeleição.
Para Fernando Haddad, do PT, a ida de Bolsonaro à Rússia teve “um único propósito: conhecer as últimas novidades no campo da disseminação de fake news”. A presença na comitiva de um dos filhos do ex-capitão, Carlos, o miliciano digital-chefe, dá corda à hipótese. O comentário de Haddad parece ter sido também uma alusão a um rival do WhatsApp, o Telegram. Este é invenção de dois irmãos russos, Nicolai e Pavel Durov. Sua sede é em Dubai. Em dezembro, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, tinha mandado um ofício a Dubai a pedir uma reunião e a indicação de um representante da empresa.
Bolsonaro acha “covardia” a posição do TSE sobre o Telegram e fez propaganda do aplicativo logo após visitar o Kremlin. Barroso cogita banir a empresa do País (53% dos smartphones locais o têm), ante a impossibilidade de incluí-la em um acordo antimentiras recém-selado pela Corte com Facebook, YouTube e cia. Edson Fachin, que assume o lugar de Barroso no dia 22, disse ao Estadão, com o ex-capitão em Moscou, que a Corte talvez já esteja sob ataque de hackers russos. Será? É do interesse de Putin bagunçar a eleição daqui? O favorito para ganhá-la é Lula, que no poder dava-se bem com a Rússia.
PUTIN É, NO MOMENTO, O LÍDER QUE IMPEDE O ABSOLUTO ISOLAMENTO DO BRASIL
“Não sei o que o Bolsonaro foi fazer lá”, disse o ex-presidente a uma rádio curitibana na véspera da reunião do presidente com Putin. “Acho que o Bolsonaro acendeu muita vela a Deus para ir, porque ele estava esperando que alguém convidasse.”
O convite era de novembro. Nos dias 29 e 30 daquele mês, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, estivera em Moscou com seu homólogo, Sergey Lavrov, e o assessor especial de Putin para assuntos internacionais, Yuri Ushakov. Duas semanas antes, Lula havia sido recebido no Parlamento Europeu e por Macron, Scholz e o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez. Na mesma semana, Bolsonaro fora às Arábias e ficara enciumado com o protagonismo do petista na Europa. “O convite (russo) está aceito”, afirmou em 2 de dezembro.
O encontro com Putin foi o desfecho de uma, digamos, dança acasaladora iniciada em fins de 2020, como prenunciado por CartaCapital na reportagem “A nova paixão”, de dezembro daquele ano. Em 3 de novembro de 2020, os norte-americanos elegeram Biden. Este havia sido peça antirrussa na crise da Ucrânia em 2014, como vice de Barack Obama. Sua vitória indicava que Moscou voltaria a ser inimiga da Casa Branca, o que não ocorrera com Donald Trump. Duas semanas após o pleito, Putin jogara uma isca para Bolsonaro, que sem Trump e com Biden seria um pária global. Em uma reunião dos BRICS via web duas semanas após a eleição nos EUA, Putin elogiou “as melhores qualidades masculinas” de Bolsonaro. “Gostou do presidente da Rússia, ontem?”, regozijara-se o machão perante apoiadores.
Em maio de 2021, Putin fez outro gesto. Indultara um brasileiro preso na Rússia em 2019, Robson Nascimento de Oliveira, acusado de tráfico de drogas (uns remédios levados para os patrões, na verdade). Um mês depois, Bolsonaro mandou um vídeo ao Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, evento patrocinado pelo Kremlin. O fórum, segundo o brasileiro, é “caixa de ressonância da nova paisagem geopolítica e geoeconômica em construção na Eurásia, região de importância decisiva e crescente, no epicentro das grandes transformações do mundo de hoje”. E logo haveria a ida de Lula à Europa e a de Carlos França a Moscou para encontrar Lavrov.
Barroso ameaça proibir o aplicativo russo Telegram – Imagem: Antonio Augusto/TSE
Os dois diplomatas também se reuniram, juntamente com os ministros da Defesa de ambos os países, na quarta-feira 16, para análises sobre geopolítica e cooperação científico-militar. Lavrov defendeu em seguida, em público, a entrada brasileira no Conselho de Segurança da ONU como membro permanente, reivindicação dos tempos de Lula. “Confirmamos hoje que a Rússia reafirma seu apoio à candidatura do Brasil”, declarou. “Tenho de admitir que nunca ouvi com tanta clareza (o apoio russo) quanto desta vez. É um avanço”, disse Celso Amorim a CartaCapital. O comunicado do Itamaraty após a reunião de Bolsonaro e Putin aborda o tema. Agradece o “reiterado apoio russo ao Brasil como forte candidato, merecedor de um assento permanente” no Conselho.
Tio Sam, um dos integrantes do clube VIP, tentou evitar o tête-à-tête de Bolsonaro e Putin. Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano, telefonou duas vezes para Carlos França, em janeiro. Após a primeira ligação, a chancelaria ianque divulgou uma nota exagerada sobre a conversa. Dizia que tinha sido “sobre prioridades compartilhadas, incluindo a necessidade de uma resposta forte e unida a novas agressões russas contra a Ucrânia”. O Itamaraty assinalou coisa distinta: “Abordaram a situação na Ucrânia e a necessidade de encontrar uma solução conforme o direito internacional”.
Ao chegar do Kremlin ao hotel, Bolsonaro comentou com jornalistas que “alguns países gostariam que o evento se realizasse, alguns achavam que o pior podia acontecer com a nossa presença aqui”. Uma referência aos EUA, embora sem nomes. Ele teria desistido da viagem, caso recebesse uma ligação ou um convite de Biden para ir a Washington, conforme recente reportagem do New York Times. Informação atribuída pelo jornal a “dois altos funcionários dos EUA”.
Ah, se o pedido para desistir da viagem tivesse partido do ídolo Trump… •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Por vias tortas”
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