Política
Eventos climáticos extremos tendem a se suceder, mas o Poder Público só se move após o desastre
Em 2021, o governo fluminense aplicou menos da metade do orçamento previsto para prevenção


A tormenta parecia não ter fim. Na terça-feira 15, durante seis horas, um forte temporal despejou 259,8 milímetros de água, o maior volume de chuvas em 90 anos, e arrasou a cidade de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. As ruas da antiga estância de veraneio da Corte Imperial se converteram em caudalosos rios, arrastando com força descomunal sofás, geladeiras, automóveis e o que mais encontrassem pelo caminho.
Quando a tempestade se dissipou, o cenário era desolador. Ao menos 54 casas foram destruídas pelas enxurradas e deslizamentos de terra. Mais de 400 cidadãos precisaram ser acolhidos em abrigos improvisados. O número de mortos crescia de forma assustadora a cada novo boletim da Defesa Civil. Na noite seguinte, o Corpo de Bombeiros confirmou a morte de 94 moradores. Apenas 24 foram resgatados com vida até aquele momento.
O total já é superior ao da tragédia de 2011, quando 74 habitantes da cidade (918 em toda a região serrana) perderam a vida na temporada de chuvas. Somente o desastre de 1988, com a morte de 138 moradores, foi mais letal. Ao menos por ora. Até a conclusão desta reportagem, as autoridades locais não apresentaram sequer uma estimativa do número de desaparecidos. O secretário da Defesa Civil e comandante-geral do Corpo de Bombeiros, coronel Leandro Monteiro, confirmou, porém, que muitos moradores continuam à procura de parentes nas áreas atingidas por soterramentos.
Com a tragédia consumada, o governador fluminense Cláudio Castro prometeu remover todas as famílias que vivem em áreas de risco. “Teremos postura corajosa e desmedida para fazer o que precisa ser feito, doa a quem doer”, discursou Castro, sem esclarecer por que, então, a sua gestão gastou somente 47% do orçamento disponível para o programa de prevenção e resposta a desastres naturais no ano passado. Dos 407,8 milhões de reais da dotação inicial, apenas 192,8 milhões foram empenhados, segundo dados do Portal da Transparência. “Não se resolvem 20, 30, 40 anos em um ano”, esquivou-se o governador, que tomou posse em caráter definitivo em 1º de maio de 2021, após o impeachment de Wilson Witzel.
De fato, o volume de chuva que caiu em Petrópolis em apenas seis horas é quase o total acumulado nos últimos 30 dias (272 mm). Desde que iniciou as aferições, em 1932, o Instituto Nacional de Meteorologia, conhecido pela sigla Inmet, jamais registrou um temporal tão intenso no município. Segundo especialistas consultados por CartaCapital, os eventos climáticos extremos tendem a se tornar cada vez mais frequentes, por conta do aquecimento global, e estão longe de ser meros “fenômenos naturais”.
“O problema da crise climática não é natural, mas social. O aumento da temperatura da superfície global tornará esses eventos cada vez mais intensos. Mas o nosso questionamento é: qual é a infraestrutura que temos para proteger as comunidades que vivem em áreas de risco ou que estão em situação de vulnerabilidade? A resposta para isso é: nenhuma”, alerta Rodrigo Santos de Jesus, responsável pela campanha de Clima e Justiça do Greenpeace Brasil. “Não existe uma prioridade em termos de planejamento urbanístico para áreas de risco. Às vezes, nem sequer existe um mapeamento das vulnerabilidades socioeconômicas dentro das cidades ou em zonas rurais.”
Em 2021, o governo fluminense aplicou menos da metade do orçamento previsto para prevenção
Após a tragédia em Petrópolis, a ONG criou um abaixo-assinado para pressionar governadores a decretarem “estado de emergência climática”, visando a criação de planos de adaptação. “Não podemos permitir que o Poder Público se mova somente pela urgência da catástrofe”, diz a petição.
Na avaliação do secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, é difícil cravar que a tempestade seja consequência direta das mudanças climáticas, mas uma coisa é certa: “Elas provocam exatamente o que vimos no sul da Bahia, no norte de Minas Gerais e agora em Petrópolis”. O especialista reforça a necessidade de o Poder Público se preparar melhor para eventos climáticos extremos. “Existe algo similar em todas as últimas tragédias, que é a vitimização das populações mais pobres, geralmente alocadas em áreas com risco de desabamento ou enchentes. A adaptação deveria ser a palavra de ordem para os governos.”
Em 2018, o estado do Rio de Janeiro formulou um plano de adaptação climática, com iniciativas de intervenção física e de conscientização das comunidades. O documento reconhece que o estado é “particularmente vulnerável a desastres naturais associados a eventos extremos em decorrência de históricas e constantes alterações no espaço físico e de questões biofísicas, como o relevo montanhoso, a descaracterização de rios e córregos, e o desmatamento da cobertura original de Mata Atlântica, bem como da ocupação desordenada de sua zona costeira”.
Um estudo do Observatório do Clima e Saúde da Fiocruz revela que os desastres naturais nos municípios fluminenses deixaram, de 2001 a 2013, 1.381 mortos, 150.809 desalojados, 43.491 desabrigados e 7.882 feridos. No cálculo, não foi incluído o ano de 2012, devido à ausência de dados oficiais.
Em resposta aos questionamentos de CartaCapital sobre os investimentos na prevenção de desastres em Petrópolis, o governo do Rio informou ter investido 28 milhões de reais em obras de melhoria do escoamento dos rios Santo Antônio, Cuiabá e Carvão, “para minimizar as inundações decorrentes do transbordo desses rios”. No segundo semestre de 2021, o programa Limpa Rio também removeu 13.378 metros cúbicos de resíduos em diversas localidades. Além disso, a cidade de Petrópolis foi uma das contempladas pelo programa Casa da Gente para receber 340 unidades habitacionais. Mas, como a própria nota reconhece, as moradias são para sanar apenas “parte do passivo da tragédia de 2011”.
A prefeitura de Petrópolis estima que ainda existem 10 mil domicílios em áreas de risco, sem mencionar as pessoas em situação de rua. Várias delas, por sinal, ajudaram a resgatar moradores da enxurrada que devastou áreas centrais, como noticiou o jornal Extra. “Graças a Deus, consegui jogar a corda e resgatar um rapaz”, relatou Antonio Gama, de 35 anos, ex-morador de Nova Friburgo, município vizinho devastado pelas chuvas de 2011. “Essa cena nunca vi nem na minha cidade, que enfrentou enchentes assim.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Até a próxima catástrofe”
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