

Opinião
O retrocesso Temer e o desastre Bolsonaro não podem ser atribuídos ao instituto da reeleição
O que se pode dizer em favor da reeleição é que se trata de um instituto ainda muito novo para dizer que não funciona


Maquiavel, com sua sabedoria política incomparável, afirmou que as repúblicas mal fundadas procuram, ao longo dos tempos, muitas vezes por séculos, encontrar um caminho mais adequado, mudando, a todo momento, suas leis e instituições. Em vez de encontrá-lo, elas se afundam no erro e no extravio. O Brasil, seja enquanto Estado independente, seja como república, foi muito mal fundado por razões que não cabe aqui alinhar. O País confirma a tese de Maquiavel: está preso por um cipoal interminável de leis e por um processo sem-fim de mudanças constitucionais, atolando-se cada vez mais em impasses.
O debate sobre a reeleição entra nessa lógica desastrosa. O raciocínio é mais ou menos este: “Se existe uma crise, se as coisas não estão funcionando bem, vamos trocar de camisa”. Os políticos não conseguem perceber que a solução não está na mudança inconsequente. Em muitos casos, a solução consiste em fazer as instituições existentes funcionarem. Claro que reformas estruturais são necessárias, principalmente aquelas que visam remover os perpétuos mecanismos da desigualdade e da privatização do poder e do orçamento. Mas, voltando a Maquiavel, ele observa que as repúblicas bem fundadas eram aquelas estáveis e perduráveis.
A história referenda essa tese: a Esparta de Licurgo, a república romana antiga, a própria lei mosaica da Bíblia, implantada e garantida pelo fio da espada, tinham ordenamentos perduráveis. Os Federalistas modernos, quando arquitetaram a Constituição norte-americana, tinham uma obsessão: criar instituições estáveis. Já os políticos e legisladores brasileiros inscreveram em suas testas e em seus corações o famoso dito de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Vamos mudar para que tudo fique como está”. Este é o triste espetáculo que oferecem para distrair o povo.
Até mesmo o pai da reeleição, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, se arrependeu de sua criatura e a vê como causa das crises. Em artigo publicado em 2020, faz autocrítica da mudança que bancou. Não apresenta nenhum argumento consistente para validar sua tese. O único argumento válido, neste caso, consistiria em comparar a incidência de crises antes e depois da reeleição. Parece evidente que o período pré-reeleição foi muito mais eivado de crises. No pós-reeleição, a grande crise foi o impeachment de Dilma, visto cada vez mais por analistas como um golpe. O retrocesso do governo Temer e o desastre do governo Bolsonaro não podem ser atribuídos ao instituto da reeleição.
No plano dos estados e municípios, não há fatos que corroborem a tese de que a reeleição é causa de crises. Estudos empíricos mostram que o fato de um prefeito concorrer à reeleição não lhe dá vantagem significativa para a sua vitória. No folclore da política brasileira, há até um exemplo contrário, do tempo em que não havia reeleição, uma suposta afirmação de Orestes Quércia, que teria dito: “Quebrei o Banespa, mas elegi o Fleury”.
Esse tipo de situação anula um dos principais argumentos contra a reeleição: o da vantagem do uso da máquina pública por aquele que concorre à reeleição. Se ele não concorresse, poderia usar a máquina pública para eleger o seu sucessor. Então, o problema não está na reeleição, e sim no abuso de poder que deve ser coibido por outros meios.
Em 2016, a taxa de reeleição de prefeitos foi de 46%. Em 2020, subiu para 63%. Esses números não são conclusivos para dizer que o candidato à reeleição tem vantagens ou desvantagens na disputa. As eleições municipais de 2020 ocorreram em meio à pandemia e sob a evidência do fracasso das teses antipolíticas que dominaram as eleições de 2018. O fator conjuntural pode ter favorecido a reeleição de prefeitos.
O que se pode dizer em favor da reeleição é que se trata de um instituto ainda muito novo para dizer que não funciona. Em segundo lugar, é que se trata de um instituto que estimula a responsabilidade e a boa governança dos políticos eleitos em primeiro mandato. Por fim, vale dizer que, se um prefeito, um governador ou um presidente fazem bons governos, a população tem o direito de se beneficiar dessa boa gestão com a continuidade da mesma. Acabar com a reeleição significaria privar um município, um estado ou o país desse benefício.
Nos países parlamentaristas, premiers bem avaliados ficam por muitos anos no poder. A conservadora Angela Merkel ficou 16 anos no comando da Alemanha. O socialista Felipe González governou a Espanha por 13 anos. As evidências indicam que a reeleição é mais positiva do que negativa. O instituto, contudo, pode ser aperfeiçoado. Proibir um político reeleito de vir a ser candidato novamente em eleições futuras, e não apenas nas eleições seguintes, pode favorecer a renovação de lideranças políticas. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mudar para manter como está?”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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