Mundo
Veneno em pó
O mistério da cocaína batizada que matou 24 e levou dezenas ao hospital


Em todo o mundo, os usuários conhecem os altos riscos de se comprarem drogas adulteradas, um dos efeitos da opção quase unânime dos países pela simples proibição do consumo de entorpecentes, uma guerra perdida que só alimenta a corrupção e a violência. Tratados como criminosos e não como doentes, eles acabam submetidos a um mercado sem controle e expostos a todos os tipos de trambiques, não raro com consequências fatais. Há muito tempo não se via, porém, o fenômeno que colocou em alerta a Argentina, em especial os moradores da região metropolitana de Buenos Aires. Um lote de cocaína, acrescentado de uma substância ainda não identificada, provocou em poucos dias a morte de 24 consumidores, alguns simplesmente caíram fulminados no meio da rua, e levou outras dezenas ao hospital.
Em princípio, as autoridades apontaram a naloxona, antídoto para opioides, como a causa, mas a suspeita não foi confirmada. A única certeza até o momento é de que não se tratou de um erro de produção ou excesso de pureza. Segundo fontes da área de Justiça, a distribuição do produto “envenenado” foi intencional, para afetar os traficantes que operavam na região onde a substância foi apreendida. Nos últimos dias, novos casos de vítimas hospitalizadas foram relatados em Rosário, província de Santa Fé.
Novamente, as autoridades lançaram mão de um curioso recall de cocaína. O alerta, agora, deu-se em nível nacional. Os consumidores foram orientados a não ingerir a droga adquirida nas últimas 24 horas. Para além da polêmica gerada pelo anúncio oficial do governo, criticado pelo ministro de Segurança, Aníbal Fernández, que se retratou em seguida, veio à tona o preconceito em relação aos usuários e a suspeita de parceria entre as forças policiais e o tráfico.
As autoridades ainda não identificaram a substância letal misturada à droga
Em um primeiro momento, atribuiu-se a responsabilidade a uma disputa entre facções pelo domínio do ponto de venda na localidade de Puerta 8, na periferia da capital. “Eu tenho a impressão de que hoje, ao não ter condução desse negócio, ao haver sido quebrado o pacto entre as cúpulas policiais, porque hoje a cúpula policial não recebe dinheiro, evidentemente os narcotraficantes presentes na zona perderam a linha. Então, não se está produzindo nem a proteção policial ao narcotráfico nem o cuidado que eles devem ter quando pactuam com a polícia para evitar esse tipo de escândalo”, avalia Mauro Federico, autor do livro Historia de la Droga en la Argentina: De la Cocaína Legal y los Fumaderos a los Narcos y las Metanfetaminas.
Foi questão de dias para que se encontrasse um primeiro culpado, o paraguaio Joaquín Aquino, vulgo “El Paisa”, que está detido e tende a ser extraditado. Aquino foi preso com pacotes de cocaína similares àqueles que envolviam a droga adulterada e faz parte de uma organização criminosa liderada por Max Alí Alegre Luna, o “Alicho”, também preso por tráfico. Ainda assim, a polícia segue a política de criminalização do usuário, na maioria das vezes dependente, como é o caso de Walter. Ele sobreviveu ao “veneno” da droga, mas não pôde evitar o assédio policial ao voltar para casa depois de passar três dias em terapia intensiva. Durante uma conversa com CartaCapital por telefone, Walter foi interrompido por policiais que queriam saber onde era o ponto de vendas no qual havia comprado a cocaína. O sobrevivente mora em Loma Hermosa, na localidade de 3 de Febrero, perto do assentamento Puerta 8. Walter repetia que “tinha comprado aqui no bairro, porque a droga era vendida aqui, a cinco quadras da minha casa”, quando, de repente, a chamada é interrompida por vozes que dizem: “Ontem estivemos aqui com Berni” (o ministro de Segurança da Província de Buenos Aires). Ao que Walter responde: “Esperem um momentinho que estou falando com uma jornalista”. Apenas é possível ouvir uma voz ao fundo que responde “desliga”, seguida da frase “diga onde está”. O contato é cortado abruptamente. “Você poderia me ligar mais tarde, porque acaba de vir a polícia e queria me levar”, pede Walter. “Eles queriam que eu dissesse onde fica o QG e eu não sabia onde ficava.” Walter contou que “tinha consumido a cocaína que estava adulterada” e, de repente, começou a se sentir mal, com falta de ar. “Eu estava desmaiado, desvanecido, apenas voltei a ter consciência no dia seguinte. Fui entubado, recebi soro e não sei que drogas mais para estabilizar o corpo. Não tive hemorragia nem vômito, só não despertava.”
Gustavo Zbuczynski, especialista em controle de danos à saúde, ressalta que “na Argentina está proibido todo tipo de porte de substâncias, com o qual, a única resposta que sempre se deu, é a punição”. Ele atribui essa opção a um discurso carregado de concepções morais, segundo o qual debater o assunto é um problema. “Por isso, nós temos hoje pela primeira vez um alerta do governo da província dizendo que, se compraram cocaína, não a consumam.” Segundo Zbuczynski, trata-se de resolver um problema complexo com a resposta equivocada. “Se nós, diante de um problema social, sanitário eu diria, como é o consumo de drogas, tratamos de resolver com a punição dos usuários, estamos utilizando a estratégia errada.” Um dos slogans de uma campanha de conscientização lançada pela associação presidida pelo especialista afirma: “Existem drogas que fazem mal e existem políticas de droga que fazem pior”. O objetivo era mostrar justamente que “uma droga é capaz de produzir um dano, mas uma política equivocada é capaz de maximizar os danos que essa droga é capaz de produzir”, explica. “A única coisa que a proibição fez na Argentina foi agravar todos os problemas que as drogas são capazes de produzir.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Veneno em pó”
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.