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A Ucrânia e a Weimar russa

A expansão da Otan para o Leste nunca foi questão pacífica. Nem na Europa, nem nos EUA

A Ucrânia e a Weimar russa
A Ucrânia e a Weimar russa
Os exércitos russo e bielorrusso em exercício de 10 dias em Belarus, próximo da fronteira com a Ucrânia. AFP PHOTO /Russian Defence Ministry
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A crise da Ucrânia é uma questão séria. Não creio que o que se passa na fronteira com a Rússia seja mero blefe para ganhar protagonismo internacional. No essencial, julgo eu, a situação representa uma típica crise de confiança entre dois blocos políticos numa matéria que ambos consideram sensível para a sua segurança. A Otan não aceita o veto russo à sua expansão a leste da Europa. A Rússia considera a presença da estrutura militar aliada no outro lado da sua fronteira como uma provocação e uma intolerável ameaça à sua segurança.

Nada disto é novo. Para qualquer dos dois lados, o tema da expansão da Otan para o Leste Europeu é matéria há muito em debate. Por um lado, a Ucrânia sempre foi um país profundamente dividido culturalmente entre atração russa e o desejo de integração ocidental (pelo meio da Ucrânia passa uma das famosas linhas de fratura civilizatória que Samuel ­Huntington descreveu no seu controverso livro O Choque de Civilizações). Por outro lado, a expansão a leste da Otan é um processo em marcha desde o fim da Guerra Fria e que não tem parado desde então. Começou com a Polônia, a Hungria e a República Checa. Seguiram-se a Bulgária, a Estônia, a Letônia, a Lituânia, a Romênia, a Eslováquia e a Eslovênia. Finalmente, num terceiro movi mento de integração e alargamento, aderiram à aliança os países dos Balcãs ocidentais, a Albânia, a Croácia e Montenegro. O último país a aderir foi a Macedônia do Norte em março de 2020.

Compreendo muito bem que a Ucrânia não possa aceitar que qualquer outro país possa limitar a sua liberdade e a sua soberania em decisões de segurança nacional. Compreendo também que os Estados membros da Otan não possam aceitar que outros países condicionem a sua vontade e as suas decisões quanto a aceitar novos integrantes. Mas é também um erro não levar a sério as preocupações russas nem tentar compreender as sua razões. Não adianta nada colocar a questão da forma maniqueísta em que a imprensa ocidental, de forma geral, a  tem colocado – de um lado os bons, os bravos e os homens livres, do outro, os malvados, os tiranos, cujas intenções só podem ser agressivas, conquistadoras e malévolas.

Aliás, a propósito  da expansão da Otan para leste gostaria de lembrar, para quem parece ter chegado só agora a este debate, que a questão de até onde esta deve ir nunca foi pacífica nem na Europa nem nos Estados Unidos. Vários ideólogos e pensadores da política externa norte-americana (a maior parte deles pertencentes aos círculos do Partido Republicano e insuspeitos de qualquer filiação esquerdista) criticaram com palavras fortes a extensão a leste empreendida durante o mandato de Bill Clinton, considerando essa ação como um movimento estouvado e perigoso que poderia  representar uma gratuita e desnecessária provocação à Rússia e que poria em causa a plena integração daquele país na comunidade internacional e na nova ordem saída do fim da Guerra Fria .

Seja como for, a crise ucraniana produziu alinhamentos absolutamente inéditos. O mais importante foi, sem dúvida, a declaração da cimeira sino-russa, assinada pelos dois presidentes, na qual é afirmada a oposição dos dois países à expansão da Otan, uma cooperação sem “ áreas proibidas” e uma “amizade sem limites”. Para quem conhece a linguagem diplomática, a declaração vai muito além do que era esperado , em especial esta última expressão – “sem limites”. A cuidadosa escolha de palavras não podia ser mais explícita.  Para quem assistiu nos anos 70 do século passado à surpreendente visita de Richard Nixon à China e às consequências que essa virada estratégica teve no equilíbrio de poderes da Guerra Fria, não pode deixar de se interrogar como é que os estrategistas dos EUA não se deram conta desta consequência e desta possibilidade, a de transformar em aliados os antigos rivais. Para quem conhece a dupla tradição de idealismo e de realismo que sempre orientou a política externa norte-americana, é talvez o momento para dizer que um pouco mais deste último está a faltar na administração Biden. Nunca pensei em vir a escrever isto, mas acho que os Estados Unidos precisam de um pouco mais de Kissinger e um pouco menos de visão providencial de si próprios. Mais respeito pelo equilíbrio de poder e um pouco menos de idealismo radical que pouco espaço deixa à diplomacia.

Enquanto acabo este artigo, leio o relato da visita do presidente francês a Moscou e a declaração de Putin no fim da reunião. Dali, Macron segue para a capital da Ucrânia. Finalmente, a diplomacia europeia parece ter acordado e decide também jogar as suas cartas. São ­boas noticias. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A Ucrânia e a Weimar russa”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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