Vilma Reis

Socióloga, ativista e ex-ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia

Opinião

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Os condenados da Terra

Os algozes de Moïse, Durval e Marielle apostam na força brutal do Estado miliciano e na desumanização das pessoas negras

Os condenados da Terra
Os condenados da Terra
Foto: Nelson Almeida/AFP
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Os assassinatos de Moïse ­Kabagambe, jovem refugiado congolês, e do cidadão carioca Durval Teófilo criaram uma comoção e mobilizaram movimentos sociais no Brasil e no mundo.

Os crimes nos colocam na grave e vexatória situação de sermos uma nação que despreza a população negra, que representa mais de 56% do País. A violência que matou esses dois homens negros tem ligação direta com as forças que controlam o Rio de Janeiro e também tiraram a vida de Marielle Franco, em 2018.

Moïse veio do Congo, terra do grande líder anticapitalista e pan-africanista Patrice Lumumba, que lutou pela solidariedade entre os povos e nutriu a esperança de que o capital, o poder dos impérios do Norte global e o ódio de classe não fossem as moedas de governança na geopolítica do mundo.

É por isso que hoje buscamos inspiração em outros lutadores e lutadoras, como Franz Fanon, psiquiatra da Martinica que lutou na Guerra da Argélia contra as forças coloniais, Lélia Gonzalez, filósofa e antropóloga brasileira, ativista negra fundadora do Movimento Negro Unificado (MUN), e Angela Davis, filósofa e ativista afro-americana. Essas pessoas nos ajudam a entender as encomendas atualizadas do fascismo-racismo e a organizarmos as lutas necessárias para enfrentar a matança de homens negros e mulheres negras.

Embora o cenário do Rio de Janeiro ganhe, neste momento, destaque, ele se repete como tragédia em todos os estados e cidades brasileiras. E se isso acontece, é porque há uma triste banalização das vidas negras, indígenas, LGBTQIA+, ciganas e de outros grupos irmãos que, secularmente, enfrentam as iniquidades raciais e de gênero no Brasil.

O pensamento desses autores e autoras é fundamental para compreendermos as raízes de violência que marcam a experiência negra no Brasil, país no qual as elites econômicas e políticas, constituídas na sua quase totalidade por descendentes de europeus, têm, secularmente, as costas viradas para culturas que não as suas.

Foi a indiferença à humanidade negra que ceifou as vidas de Moïse e Durval. Assim como foi a brutalidade miliciana – no comando das instituições da vida pública brasileira – que, por não admitir a existência da polifonia de vozes no ambiente da política brasileira, ceifou a vida de Marielle Franco.

Neste momento, o Brasil é, mais uma vez, motivo de escárnio internacional e de profunda vergonha para todas e todos os que lutam para qualificar a democracia brasileira ou o que ainda nos resta de Estado Democrático de Direito.

Cabe dizer ainda que, no Brasil, as leis de refugiados são resultado de muitas lutas. Se chegamos a um caso extremo como o de Moïse é também porque não cumprimos todos os tratados assinados no contexto internacional. O Brasil não protegeu a vida de um jovem refugiado, que, sendo vítima das tramas que o colonialismo engendrou em seu país de origem, buscou ajuda humanitária aqui.

A trama racista que matou Moïse está diretamente ligada ao racismo do oficial da Marinha que matou Durval Teófilo, assim como às balas que mataram ­Marielle Franco. Os algozes de Moïse, Durval e Marielle apostam na força brutal do Estado miliciano, na desumanização negra e na força da criminalização e culpabilização das próprias vítimas.

Mas os movimentos sociais, destacadamente os movimentos negros e de mulheres negras, não vão deixar que as memórias sejam manchadas com as indignidades do Estado miliciano e de suas forças paramilitares. Nós vamos, sim, seguir politizando as mortes negras no Brasil.

E temos uma história construída também. Tivemos, na gestão de Fernando Haddad no Ministério da Educação, a publicação da coleção História Geral da África, e uma série de leis e políticas públicas implementadas nos governos Lula e Dilma. Cito, entre elas, a reabertura das representações diplomáticas no continente africano; a criação da Lei 10.639/2003, para tratar da Educação das Relações Raciais e para o Ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira e Africana; as políticas de Ações Afirmativas e todas as suas repercussões.

Todos esses caminhos precisam ser retomados pelo Estado brasileiro. Só assim enfrentaremos a desumanização e a criminalização negra.

O samba e as outras formas-vivência que nos traduzem culturalmente são um legado da civilização Congo-Bantu e, também por isso, não é possível matar o Congo que todos e todas carregamos em nossas memórias. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os condenados da Terra”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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