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Semana de Arte Moderna motiva o lançamento de dezenas de livros

O entendimento de que São Paulo foi o berço do modernismo no Brasil é um dos pontos postos à prova

Semana de Arte Moderna motiva o lançamento de dezenas de livros
Semana de Arte Moderna motiva o lançamento de dezenas de livros
Foto tirada em 1922, no Theatro Municipal de São Paulo – Imagem: Biblioteca Mário de Andrade/Prefeitura de SP
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Publicado pela primeira vez em 1928 e custeado pelo próprio Mário de Andrade ­(1893-1945), Macunaína teve sua segunda edição lançada em 1937, pela então recém-criada José Olympio Editora. A versão fac-similar dessa edição, que traz a capa original, feita pelo artista visual Thomaz Santa Rosa, é uma das dezenas de lançamentos ligados à Semana de Arte Moderna que começam a chegar às livrarias e às lojas virtuais.

Se, em 1922, a maioria dos autores ligados ao movimento se viu obrigada, a exemplo de Mário, a bancar as próprias publicações, a Semana, passados cem anos, tornou-se um produto e tanto para o mercado editorial. A celebração do evento tem de tudo: reedições e novos recortes de modernistas, resgate de pré-modernistas e teorias que relativizam o culto ao movimento e a seus desdobramentos.

“A história cultural é contada de forma diferente a cada geração”, diz Sarmatz

“As efemérides são um gancho para as vendas e, se há um debate público em torno do assunto, isso favorece o potencial comercial”, diz Otávio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras. “Temos, no marketing da editora, um banco de dados de efemérides.”

A Companhia das Letras passou três anos planejando os seis lançamentos que chegam agora ao público. Entre eles, estão o Diário Confessional, de Oswald de Andrade (1890-1954), uma reunião de textos que permaneceram inéditos por uma pendenga familiar sobre direitos autorais. Cabe também à editora o grande livro-balanço: Modernismos 1922-2022. Trata-se de um conjunto de ensaios que, ao mesmo tempo que recupera o papel fundamental da Semana para as artes brasileiras, questiona aspectos específicos do movimento.

“Não se trata de detratar ou denunciar o movimento, mas de mostrar suas ambivalências. O movimento veio, de fato, de uma alta burguesia que, em vários sentidos, excluiu a arte popular e a arte feita por negros”, explica Costa, ecoando algumas das questões levantadas pelos meios acadêmicos e pelos movimentos identitários.

A Semana de 22 aconteceu entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no ­Theatro Municipal paulistano, e foi patrocinada pela elite cafeeira paulista. Seu principal mecenas foi Paulo Prado ­(1869-1943), autor de Retrato do Brasil – Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira.

A história que se conta agora é que a repercussão do evento foi, à altura, pequena. Isso teria se dado, inclusive, porque a renovação de linguagem então proposta para as artes visuais, a literatura e a música eram de difícil apreensão para muitos.

“É um movimento que foi crescendo graças a um bem-sucedido processo de autoglorificação”, diz o escritor e acadêmico Antônio Carlos Secchin, curador do podcast Palavra Alada, que estreia no domingo 13. “Quando aconteceu, sua repercussão mal ultrapassou as fronteiras de São Paulo. No caso dos livros, a maioria das edições foi bancada pelos autores. As baixas tiragens ajudam a explicar o fato de essas obras serem raras e terem se tornado objeto de culto nos meios universitários.”

O entendimento de que São Paulo foi o berço do modernismo no Brasil é outro ponto que vem sendo posto à prova . Ruy Castro escreveu sobre isso e o professor Augusto Fischer é um dos que desenvolverão essa tese – em um livro a ser publicado pela Todavia. “A história cultural é contada de forma diferente a cada geração”, diz Leandro Sarmatz, sócio da Todavia.

A grande onda de lançamentos reflete também o novo momento do negócio dos livros

A editora, por ser nova e não possuir um catálogo que permitisse reedições, encomendou sete livros sobre o assunto. Saíram este mês um estudo de Sérgio Miceli sobre Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e o grupo modernista mineiro e Mário de Andrade por Ele ­Mesmo, de Paulo Duarte (ler texto à pág. 54).

Virão ainda um livro com as cartas trocadas entre Mário de Andrade e ­Rodrigo Melo Franco, e uma biografia de Villa-Lobos (1887-1959). “Todos fazem uma reavaliação da Semana. Alguns em chave celebratória, outros em chave crítica”, define Sarmatz.

“A Semana foi um dos acontecimentos culturais mais relevantes do País e, naturalmente, todo o mercado editorial buscou uma maneira de abordá-la”, diz, sem volteios, Sônia Jardim, presidente do grupo editorial Record, ao qual pertence a José Olympio. “Aí temos desde a reedição de obras que foram emblemáticas, caso de Macunaíma, até outras que contestam a unanimidade em torno da Semana.”

A José Olympio reeditou, além de Macunaíma,Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, que reúne textos publicados entre 1857 e 1972. À Record coube O Antimodernista: Graciliano e 1922, obra na qual Graciliano Ramos olha de forma crítica para o movimento – visão que, tardiamente, parece ter entrado na moda.

O livro O Guarda-Roupa Modernista analisa a indumentária de Tarsila e Oswald – Imagem: Cia das Letras

Se a onda de lançamentos diz muito sobre o valor cultural e a riqueza de interpretações em torno da Semana de 22, ela também reflete o momento do mercado editorial. No Brasil, em 2021, houve um aumento expressivo nas vendas de livros, da ordem de 29% em volume e de 292% em faturamento. De acordo com uma pesquisa da Nielsen, divulgada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, o mercado movimentou 2,28 bilhões de reais.

“O negócio do livro mudou muito nos últimos anos. Tivemos a crise das livrarias, em 2018 e 2019, e depois, com a pandemia, em 2020, ficamos todos um pouco perdidos”, pontua Rejane Dias, diretora-executiva do Grupo Autêntica. “O mercado cresceu, mas o pontocom passou a representar 70% das vendas. E a questão é que, na internet, o que vende é aquilo que está sendo falado”, completa ela, atando o fio do mercado àquele da Semana de 22.

O Grupo Autêntica lançou A Revista Verde, de Cataguases: Contribuição à História do Modernismo, de Luiz Ruffato, que se inclui no grupo de trabalhos que serve de bússola à discussão sobre a geografia do evento. A editora tem também uma coletânea do inescapável Mário de Andrade.

Mário, por sinal, foi e continua sendo a grande estrela literária da Semana de 22. Ele é tema e autor póstumo de lançamentos que ajudam a compreender não apenas a sua produção artística, mas, sobretudo, o seu pensamento sobre a cultura brasileira e sua importância para a criação da estrutura institucional hoje sob ameaça. •


UM RASGO MODERNO NO CENTRO DA CIDADE

Inseridas no acervo histórico da Pinacoteca de São Paulo, as obras modernistas acabam por ter os seus sentidos expandidos

A pintura Amigos, de Di Cavalcanti, foi exposta na Semana de 22 e pode ser vista novamente. A obra São Paulo, de Tarsila do Amaral, também integra a exposição Modernismo. Destaques do Acervo, em cartaz até dezembro – Imagem: Isabella Mateus

Dentre as várias exposições ligadas ao centenário da Semana de 22 que começam a ser abertas, chama atenção, ­talvez por seu caráter perene, Modernismo. Destaques do Acervo, que foi aberta no mês passado na Pinacoteca de São Paulo e seguirá em cartaz até 31 de dezembro.

Pelos amplos espaços de tijolos aparentes do prédio localizado na região da Luz, no Centro de São Paulo, as obras do modernismo se deixam ver em meio à história da arte brasileira.

Com isso, acabam por ter seus sentidos expandidos e, por que não dizer, atualizados.

A exposição apresenta as obras de Tarsila do  Amaral, Victor Brecheret, ­Lasar Segall , Di Cavalcanti, Bruno Giorgi, Ernesto De Fiori,Alfredo Volpi e Aldo ­Bonadei, entre outros.

Todos eles aparecem inseridos no acervo da instituição, que inclui desde obras do perío­do colonial até a arte contemporânea.

A coleção modernista, sem dúvida impressionante, é fruto de uma parceria da Pinacoteca com a Fundação ­José e Paulina Nemirovsky, e reúne trabalhos compreendidos entre as décadas de 1920 e 1950, quando teve início o concretismo.

O modernismo nas artes plásticas, como já escreveu a curadora Regina Teixeira de Barros e como se vê nas obras que surgem, em diferentes contextos, nas várias salas da Pinacoteca, pode ser dividido em três fases.

A primeira delas sedimentou a construção da identidade brasileira, com a emergência dos temas nacionais proposta pela primeira geração de modernistas. ­Antropofagia, de Tarsila, é o símbolo talvez mais popular desse momento. Amigos, de Di Cavalcanti, que esteve presente na exposição de 22 e está na Pinacoteca, também é desse período.

Na segunda fase, entre os anos 1930 e 1940, chama atenção, segundo a curadora, o interesse dos modernistas pela pintura propriamente dita.

Passam a ser vistas, por fim, as influências do abstracionismo e, então, do concretismo.

Do todo, fica a impressão de que o Brasil, cem anos atrás, viveu algo grande. E parte disso permace vivo ali.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O centenário revisitado”

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