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Draghi + Mattarella
A reeleição do chefe do Estado, a inovar as tradições do parlamentarismo, fortalece o governo de Super Mario


O primeiro artigo da Constituição italiana, promulgada em abril de 1948 ao cabo de um trabalho de cerca de dois anos de uma Constituinte exclusiva, soletra: “A Itália é uma república baseada no trabalho”. República parlamentarista, ao contrário do Brasil, cujo sistema de governo é o presidencialista. No presidencialismo, o presidente da República é o indiscutível dono da bola, eleito diretamente pelo povo para chefiar o governo.
No regime parlamentarista italiano, o presidente da República representa o Estado e é eleito pelo Parlamento, reunido em sessão plenária, com mandato de sete anos. Nada diz que o presidente não pode ser reeleito, mas é tradição, desde a primeira eleição presidencial, que o chefe do Estado fique no cargo somente uma vez. Este hábito foi quebrado por Giorgio Napolitano em 2013, em razão de uma manobra contra Silvio Berlusconi, urdida para coibir os seus sonhos presidenciais e abrir caminho para a sua condenação por prevaricação.
Napolitano, comunista de origem controlada e garantida, e finíssimo manobrista político, reservou-se o direito de deixar o cargo quando entendesse encerrada a sua tarefa, o que de fato se deu em janeiro de 2015. Domingo 30 de janeiro Sergio Mattarella foi reeleito depois de sete tentativas frustradas de levar à Presidência outros candidatos. Foi uma satisfação dada aos italianos, a se levar em conta a popularidade deste presidente. Há tempo, de resto, uma pesquisa confiável atribui a 70% da população a preferência pela eleição direta do chefe do Estado.
Assim o jornal La Repubblica refere-se a Mattarella: “Foi reeleito porque tranquiliza. É paternal em um tempo sem pais. A sua concepção de mando tende a se manifestar por subtração. É um líder que absorve as tensões em lugar de exasperá-las”. Ainda o La Repubblica: “Sergio Mattarella é como Sandro Pertini, ambos entraram em conexão sentimental com a alma secreta da nação”. E de ambos permanecerá no imaginário a torcida de Pertini no Mundial de Futebol de 1982, bem como a de Mattarella em Wembley, em julho do ano passado, ao sagrar-se a Azurra campeã da Eurocopa, quando os albiônicos mostraram que não sabem perder. Um dos filhos do príncipe Charles, presidente da Confederação Inglesa de Futebol, não cumprimentou Mattarella, presente a escassos metros de distância, na tribuna de honra.
Irmão de Piersanti Mattarella, presidente da região Sicília assassinado pela Máfia em 1980, Sergio, seis anos mais moço e hoje com 80, é jurista e político com militância no Partido Democrata-Cristão. Figurava na corrente progressista do PDC, destinada a refluir para a liderança de Aldo Moro, assassinado, em 1978, no cativeiro, pelas Brigadas Vermelhas infiltradas pela CIA. Ou por outra: os Mattarella se opunham dentro do partido à liderança dissidente do maior hipócrita da política peninsular do século passado. Era Giulio Andreotti, magistralmente retratado pelo diretor Sorrentino no filme Il Divo, na interpretação inesquecível de Toni Servillo, já ganhador de um Oscar com A Grande Beleza.
“Absorve as tensões em lugar de exasperá-las” – Imagem: Palazzo del Quirinale/Presidenza della Repubblica
Andreotti era o primeiro-ministro italiano quando da captura de Moro, enquanto Francesco Cossiga estava na Presidência da República, ambos firmes ao repelir as tentativas terroristas de chantagem política, embora estivesse claro o sacrifício iminente de Moro, sonhador de um entendimento com Enrico Berlinguer, líder do PCI, o chamado “Compromisso Histórico”. De Andreotti sabe-se da aproximação à Máfia em ocasiões eleitorais, inclusive uma troca de beijos com Totò Riina, quando o capo di tutti i capi ainda não fora preso e trancafiado em presídio de segurança máxima. Como se não bastasse, suspeita-se que Andreotti tenha sido o mandante do assassinato do jornalista Mino Pecorelli, conhecedor de alguma de suas mazelas.
Opostas as razões do apreço compacto da nação em relação a Sergio Mattarella, o qual foi decisivo na indicação de Mario Draghi para a chefia do governo e um sustentáculo imprescindível, sobretudo na tarefa de combater o populismo peninsular tão bem representado por Matteo Salvini, líder da Liga Norte e o grande derrotado desta eleição. À direita sobe a estrela de Giorgia Meloni, hoje cotada pelas pesquisas com em torno de 19% dos votos futuros, enquanto os populistas, também chamados de soberanistas, caem para posições mínimas. Meloni leva a vantagem de ser mais articulada e mais coerente do que os demais, os quais, abençoados por Berlusconi, se apresentavam como representantes do centro-direita.
O peso político de Berlusconi, neste ínterim, caiu vertiginosamente, bem como o dos outros por ele apoiados. Não será o governo Draghi forçado a uma reforma capaz de adaptá-lo a uma situação nova? A ideia do governo de unidade nacional não cederia em uma conjuntura profundamente distinta daquela anterior à reeleição de Mattarella? Outro partido em um momento extremamente difícil é aquele Movimento 5 Estrelas, que já manteve como premier Giuseppe Conte. A agremiação é hoje dilacerada por disputas interiores, comandadas, de um lado, pelo próprio Conte e, do outro, pelo ministro das Relações Exteriores, Luigi Di Maio, enquanto o fundador, Beppe Grillo, sumiu provavelmente nos bastidores de algum teatro de vaudeville.
A única certeza é a primazia do Partido Democrático, rico em peças graúdas no tabuleiro da política italiana e muito próximo do ministro da Saúde, Roberto Speranza, sempre louvado pelos acertos da sua atuação contra a pandemia. De Speranza ouviremos falar mais. É o nome do presente e mais ainda do futuro. Outra certeza, talvez mais significativa, é ilustrada pela perspectiva de que a Itália volte a ser o país-modelo da Europa. O governo de Mario Draghi prepara-se a reduzir sensivelmente as medidas anti-Covid em relação à população e aos visitantes estrangeiros, e a implementar um plano imponente de desenvolvimento industrial ao se valer, inclusive, dos recursos orçados pela União Europeia, os chamados Recovery Plans, ao somar um investimento próximo de 200 bilhões de euros.
Sólido, o governo de Super Mario, a confirmar a sua estatura de estadista, fortalecido agora de maneira ainda mais transparente pelo apoio do presidente reeleito. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Draghi + Mattarella”
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