Frente Ampla
Patologia social
O macabro assassinato do jovem congolês Moïse Kabagambe desnuda a violência e a brutalidade a que está submetida a juventude negra do Brasil


O assassinato brutal do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe no Rio de Janeiro escancarou para o mundo o estado de beligerância e barbárie em que estamos imersos. Asilado político no Brasil desde 2011, para fugir da guerra civil que se instalou em seu país, o jovem de 24 anos tornou-se mais uma vítima do discurso de ódio, do racismo e da intolerância, temperados pela violência que tem imperado em nosso país nos últimos anos. Em verdade, foi mais uma vítima do racismo estrutural apresentado, desta vez, em estado puro e letal. Nem as câmeras de segurança, nem as testemunhas que presenciaram o espancamento, nem mesmo o imponente local, a Barra da Tijuca, ponto turístico conhecido mundialmente, foram suficientes para inibir o espetáculo macabro de socos e pauladas que levaram o jovem africano à morte.
Esta manifestação de desprezo pela vida não é obra do acaso, é fruto de trabalho calculado e meticuloso de estímulo ao descaso para com as minorias que autoridades importantes do País, apoiadas por setores conservadores da sociedade, têm adotado. O “fazer justiça com as próprias mãos”, seja por meio de pauladas ou armando a população de forma insana, como temos visto diariamente pelos veículos de comunicação, não poderia ter outro resultado, senão o aumento exponencial da violência.
Parte da população está se sentindo autorizada ao uso da violência, exatamente por aqueles que deveriam combatê-la. E não podemos cair nessa armadilha. Temos de resistir. Temos de insistir. A luta pela pacificação da nossa sociedade não pode ser uma figura de retórica. Precisa tornar-se uma realidade.
A indignação que se seguiu, o desespero dos familiares e amigos da vítima, assim como a cobertura da mídia cobrando providências severas contra esta selvageria pareciam cenas de uma crônica de uma morte anunciada. A impressão de que isso é algo normal, uma fatalidade ou responsabilidade individual dos criminosos, não se justifica. Não pode ser aceita. Pode até parecer normal, mas não o é. Isto é a barbárie. E por isso mesmo precisa ser duramente combatida. Temos de dar um basta a essa tragédia que tem se abatido sobre Brasil nas últimas décadas. A naturalização dos assassinatos, sobretudo contra a juventude negra de nosso país, está se tornando uma patologia, uma doença social. Todos somos responsáveis tanto pela tragédia quanto pela sua superação.
Os dados do Instituto Sou da Paz sobre a violência no Brasil são estarrecedores: de 1990 para cá, as armas de fogo foram responsáveis por 70% dos homicídios no País, e as principais vítimas são da população negra. O estudo Violência Armada e Racismo informa que 78% das vítimas de agressão armada são pessoas negras, representando mais de 30 mil assassinatos apenas no ano de 2019. No que diz respeito à juventude negra, a tragédia ganha contornos dramáticos. Os jovens negros com idade entre 15 e 29 anos são os mais vulneráveis, representando 75,7% das vítimas, segundo o Atlas da Violência de 2020. Isso é uma verdadeira carnificina.
Assim como ocorreu nos EUA no assassinato do afro-americano George Floyd, a sociedade brasileira, independentemente da pigmentação de sua pele, precisa unir-se para impedir que a nossa juventude negra continue sendo literalmente exterminada e que a sociedade viva aos sobressaltos diante de tanta violência. Precisamos juntar as instituições democráticas, o Executivo, o Judiciário, as organizações sindicais, os movimentos sociais e, em particular, o movimento negro, todos aqueles que acreditam em uma nação fraterna e solidária, para exigir políticas públicas que protejam a nossa juventude e lhe propicie o acesso à educação, à cultura, ao lazer e à vida de forma plena.
Sabemos que o racismo no Brasil é estrutural. Sabemos que não iremos resolver esta questão com um passe de mágica, mas não podemos ficar inertes. Precisamos nos mobilizar em defesa da vida. Precisamos recuperar a disposição de cantar a plenos pulmões os memoráveis versos de Gonzaguinha: Viver e não ter a vergonha de ser feliz. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Patologia social”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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