Mundo
Lições portuguesas
Os resultados das eleições em Portugal oferecem algumas indicações que podem ser úteis no Brasil


A Folha de S.Paulo de 30 de janeiro incluía uma reportagem sobre as eleições portuguesas com a seguinte chamada na primeira página: “Após sete anos, Portugal pode tirar os socialistas do poder”. O artigo apoiava-se nos habituais comentaristas de Lisboa e todos previam um empate técnico entre o maior partido de esquerda (PS) e o maior partido de direita (PSD). Poucas horas depois o PS ganhava o pleito com maioria absoluta. Os resultados dão-nos algumas indicações que podem ser úteis no Brasil.
Primeira lição: o fracasso estrondoso das sondagens. A vitória esmagadora do PS após seis anos de governo e dois anos de pandemia é memorável e merece ser refletida. As sondagens usam uma lógica binária própria do pensamento quantitativo, hoje muito vigente na construção dos algoritmos nas redes sociais. Essa lógica não capta a ambiguidade, a complexidade, a contradição e muito menos as diferentes camadas de realidade, opinião e emoção que cada cidadão mobiliza ao tomar decisões.
Isto é particularmente evidente em situações que escapam à normalidade da vida coletiva. A pandemia criou uma dessas situações. Em tais circunstâncias, os dirigentes políticos devem manter contatos diretos, diversificados e continuados com os cidadãos e acumular informações qualitativas, em vez de se apoiarem em inquéritos de opinião tão fáceis quanto traiçoeiros.
Segunda lição: em tempos de insegurança existencial como a causada ou agravada por uma pandemia, os cidadãos fazem, em geral, avaliações realistas e prudentes das políticas que diminuem a sua insegurança e têm um enorme temor das políticas que a possam agravar. Se as políticas forem avaliadas como positivas, o desejo prioritário da cidadania é a estabilidade.
Portugal foi um dos países do mundo com a melhor condução da política sanitária e aquele em que a pandemia foi menos politizada, mérito tanto do governo quanto da oposição. Os partidos à esquerda do Partido Socialista, o Partido Comunista (PCP) e o Bloco de Esquerda (BE) partilharam a governação do país desde 2015, através de um acordo político inédito que recebeu o nome de geringonça. Este acordo travou a austeridade imposta pela solução neoliberal da crise financeira de 2008 e lançou o país numa recuperação econômica e social modesta, mas consistente.
A geringonça começou a precarizar-se em 2020 e colapsou no fim do ano passado, com a rejeição do orçamento apresentado pelo governo por parte do PCP e do BE. Foi isso que levou às eleições antecipadas de 30 de janeiro. Portugal será, a partir de agora, o único país europeu (e talvez do mundo) com um governo de maioria absoluta de um partido de esquerda, o Socialista. Os dois partidos à sua esquerda tiveram os piores resultados de sempre. O PCP tinha 12 deputados no Parlamento e passa a ter metade. O BE tinha 19 deputados, agora tem cinco. Ter posto em causa em período de pandemia a estabilidade considerada globalmente positiva pela cidadania foi considerado um erro crasso, duramente punido pelos eleitores.
Apesar de as inversões de situações não serem mecânicas nem os países serem facilmente comparáveis, é legítimo supor que, se as políticas de proteção sanitária durante a pandemia forem avaliadas como desastrosas por terem agravado a insegurança e causado mortes evitáveis, o objetivo principal do eleitorado em próximas eleições é pôr termo ao governo considerado responsável por isso, mesmo que a alternativa seja menos satisfatória do que o desejado. Se o governo em causa foi de extrema-direita, a opção pode ser por uma alternativa de direita menos radical ou por uma de esquerda. Vencerá a que se apresentar com maior possibilidades de êxito.
Terceira lição: em tempos de insegurança existencial acrescida, o desespero e o ressentimento são uma emoção coletiva sempre latente. Os empreendedores do medo facilmente a manipulam. No caso português, o fato mais significativo depois da vitória do PS é o crescimento exponencial da ultra-direita. Dividiu-se em duas correntes, uma de inspiração fascista (Chega), agora a terceira força política, da família da extrema-direita racista, heteropatriarcal e xenófoba europeia e mundial; e outra, de recorte hiperneoliberal, darwinismo social puro e duro, ou seja, sobrevivência do mais forte (Iniciativa Liberal), agora a quarta força política. Ocuparam assim as posições no Parlamento que antes eram detidas pelos partidos de esquerda.
Isso faz prever que, se a solução de esquerda agora vitoriosa vier a ser derrotada no futuro, a direita que a substituir não será a direita civilizada que dominou até agora, mas uma direita agressiva e brutal contra dissidentes e grupos precarizados, excluídos e discriminados. Uma direita que os brasileiros tragicamente bem conhecem. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lições portuguesas”
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