

Opinião
A corrupção da magistratura*
“Bons meninos” exibem retidão moral para praticar brutalidades em nome da Justiça


Diz o Poder360: “Moro afirmou na sexta-feira 28 de janeiro que recebeu 45 mil dólares mensais (240 mil reais) durante o período em que trabalhou para a empresa Alvarez & Marsal ao longo de 2020 e 2021. O ex-juiz atuou na área de adequação de clientes a normas legais e éticas, também chamada de compliance, depois de deixar o Ministério da Justiça do governo Bolsonaro”.
Em suas manifestações públicas, entrevistas e conexos, Sergio Moro exibe precariedade cultural aguda e, ainda mais grave, revela assustadora incompreensão da função pública que ocupou até ceder à tentação de chefiar a pasta da Justiça no governo Bolsonaro.
Vou recorrer a Max Weber para avaliar as peripécias de Moro. Devo advertir o ex-juiz e seu Sexta-Feira, Kim Kataguiri, que não se trata de um centroavante desfilando nos campos da Alemanha, mas do sociólogo preferido do ex-presidente FHC.
Weber sabia que o sistema social e as formas políticas construídas pela “sociedade burguesa” seriam destroçados por tensões insuportáveis, na ausência de uma burocracia pública cujos valores maiores fossem a honra, a dignidade, o status, o sentido de dever para com a comunidade. Weber falava, particularmente, das burocracias envolvidas na prestação jurisdicional e suas prerrogativas de independência funcional, irredutibilidade dos vencimentos, vitaliciedade (que poderia ser suspensa no caso de falta grave) e direito a uma aposentadoria especial.
Essas prerrogativas não concedem um privilégio à pessoa do juiz, mas, sim, pretendem dar ao cidadão a certeza de que será julgado por um magistrado capaz de resistir aos poderes econômico e político, aos arreganhos das burocracias autoritárias ou às tentativas midiáticas de atemorizar e de influenciar a prestação jurisdicional. Tais cuidados partem do princípio de que os conflitos de interesse, algumas vezes entre iguais e outras opondo desiguais do ponto de vista social e econômico – mas sempre iguais como sujeitos de direitos individuais –, são constitutivos da sociedade moderna e só podem ser resolvidos pacificamente pelo direito e por seus intérpretes legítimos.
O juiz só serve ao “povo” enquanto intérprete da lei e servo da hierarquia do sistema de prestação jurisdicional. A incompreensão dos fundamentos de suas funções e prerrogativas por parte dos funcionários do Estado escancara as portas para a horda de beleguins que pretende violar as garantias individuais para promover suas ambições de fama e dinheiro.
Imaginei – santa ingenuidade – que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem, finalmente, estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos. Mas, talvez estejamos em uma empreitada verdadeiramente subversiva, ainda que não revolucionária: a construção da República dos Hipócritas. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pela “tirania da grana e do poder”. Um sistema em que “bons meninos” exibem sua retidão moral para praticar brutalidades em nome da Justiça. O direito e a eticidade do Estado desaparecem no buraco negro do oportunismo particularista e exibicionista.
Há tempos escrevi em minha coluna em CartaCapital: o juiz Sergio Moro e o parquet de Curitiba não se cansaram de afirmar e reafirmar publicamente seu empenho em entabular relações promíscuas com a mídia, a grande, a pequena e a desprezível, no propósito de convocar a “opinião pública” à cruzada anticorrupção. Não revelo um segredo: as redes sociais estão inundadas de manifestações dos procuradores.
As manifestações dos funcionários da Justiça nas chamadas redes sociais contradizem os princípios da equidade, publicidade e impessoalidade. Salvo nos toscos arraiais anti-iluministas, há razoável consenso a respeito desses princípios. Eles devem governar as ações e decisões de funcionários do Estado encarregados de zelar pela incolumidade da ordem jurídica.
Vamos começar pelo começo: ao prestar concurso para carreiras de Estado que conferem a prerrogativa de acusar e julgar, os candidatos deveriam estar cientes da natureza e das implicações de suas funções. São carreiras fundamentais para a sustentação do Estado Democrático de Direito. Por isso, o exercício dessas nobres funções impõe a seus titulares regras de comportamento mais estritas que aquelas impostas aos cidadãos acusados ou julgados por eles.
As garantias da publicidade do procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado – e ainda inocente – contra os arcanos do poder. Pois essas conquistas da modernidade, das quais não se pode abrir mão, têm sido pisoteadas por quem deveria defendê-las. •
*O artigo reproduz trechos de colunas já publicadas em CartaCapital.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A corrupção da magistratura*”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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