Cultura
Retrato do artista operário
Uma série em 12 episódios resgata a história de Radamés Gnattali, autor de milhares de arranjos, além de trilhas sonoras e música de concerto


O violonista e arranjador Paulo Aragão, o pesquisador Pedro Paulo Malta e a jornalista Helena Aragão são os idealizadores de um projeto da Rádio Batuta, a rádio via internet do Instituto Moreira Salles (radiobatuta.ims.com.br), que resgata o trabalho e a vida do grande compositor gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988).
O programa Radamés Gnattali, Artesão e Operário da Música, disponibilizado na quinta-feira 27, data do 116º aniversário do artista, é um dos maiores documentos históricos e musicológicos sobre essa figura tão marcante da cultura brasileira. Trata-se de um profundo trabalho de pesquisa, dividido em 12 episódios, que reúne depoimentos de familiares, artistas, entrevistas de Radamés, arquivos sonoros e até gravações inéditas de peças por ele compostas.
No verbete dedicado ao artista, a Wikipédia informa: “Radamés Gnattali foi um arranjador, compositor e pianista brasileiro”. Mesmo na limitação óbvia e necessária de uma frase de apresentação em uma enciclopédia virtual, podemos depreender uma das caraterísticas de sua arte: a multiplicidade.
Gnattali teve uma atuação de altíssima qualidade em vários campos, trabalhando, às vezes simultaneamente, em projetos das mais diversas naturezas. Fugindo da tendência de muitos artistas, ele não se dava uma importância excessiva. Simplesmente, trabalhava de forma incansável e com uma dedicação quase operária – como era, de resto, sua origem.
Em sua família, ouvia-se frequentemente a frase “Tem que ter um emprego para comprar um terno e um sapato”. Radamés cresceu com essa mentalidade. O espírito operário, muito distante da ideia formada que as pessoas costumam ter sobre os artistas, o fez atravessar várias áreas.
A versatilidade, unida a uma surpreendente rapidez na realização, possibilitava que, ao mesmo tempo que escrevia centenas de arranjos para a Rádio Nacional – chegou a arranjar nove músicas por semana –, compusesse obras importantes da música de concerto ou se apresentasse junto aos amigos da música popular.
Do ponto de vista estético, Gnattali mostrava-se aberto para as mais variadas correntes
Isso sem falar nas trilhas sonoras para filmes, que começaram a ser feitas ainda na década de 1930 e se estenderam até os anos 1980. Entre as produções que contaram com sua participação estão Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro, Rio, 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, e A Falecida (1968), de Leon Hirszman.
Apesar de ser o piano seu instrumento principal, Gnattali chegou a tocar viola e violino em orquestra. É, portanto, quase inescapável chamá-lo de eclético. Mas esse ecletismo nunca se confundiu com superficialidade. Ao contrário. Se, com seus arranjos, o músico destacava-se entre os contemporâneos, muitas de suas composições clássicas entravam no repertório dos mais aclamados artistas da música de concerto.
No campo da música popular, era reverenciado por figuras como Tom Jobim, Pixinguinha e influenciando artistas do calibre de Dorival Caymmi, João Bosco e Paulinho da Viola, entre outros.
Do ponto de vista estético, Gnattali não fechava as portas para nenhuma corrente que se apresentasse em seu caminho. Embora possamos reconhecer na maioria de seus trabalhos certas características nacionalistas, temos também alguns exemplos em que Gnattali busca caminhos diferentes.
Como uma esponja, bebeu de várias fontes, filtrando as influências pela sua férvida imaginação. Também por isso é realmente difícil definir os gêneros musicais de suas obras: tudo se entrelaçando. Mantendo horizontes amplos e mentalidade abrangente, não se tornou um defensor de uma específica ideologia artística nem lutou para estabelecer novos padrões estéticos. Mas bebeu de tudo, e de todos.
Grande parte de sua música ainda está guardada, em manuscritos, nas gavetas da família. De um lado, tal atitude salva e protege seu legado. De outro, no entanto, não facilita o acesso por parte de músicos que gostariam de difundir seu vasto repertório.
Esperemos que esse rico programa em podcast e o movimento crescente de alguns artistas brasileiros pela redescoberta dos nossos grandes compositores possam permitir o acesso às preciosidades de Radamés Gnattali.
Dedicado e talentoso, ele não só alcançou o intento de “ter um emprego para comprar um terno e um sapato”, como também soube vestir a sua música com a roupa da brasilidade, permitindo assim que ela caminhasse sozinha ao longo do tempo, chegando bem mais longe do que ele mesmo poderia imaginar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Retrato do artista operário”
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