Mundo

assine e leia

Boric testa a área

O presidente eleito anuncia um ministério plural, mas acena ao mercado na área econômica

Boric testa a área
Boric testa a área
Mensagem. As mulheres serão maioria no governo, que acomoda uma ampla aliança à esquerda. “Mudança de rumo”, define Reimers, do Partido Comunista - Imagem: Javier Torres/AFP
Apoie Siga-nos no

Gabriel Boric foi comedido ao apresentar os 24 integrantes de seu ministério, na ensolarada manhã da sexta 21 em Santiago. O púlpito improvisado e as cadeiras para um pequeno público, dispostas com distanciamento de tempos pandêmicos nos jardins do Museu Nacional de História Natural, a 5 quilômetros do Palácio de La Moneda, deram um ar informal ao evento. Em 33 minutos, o presidente eleito chamou cada um de seus auxiliares, com breves notas biográficas, e pronunciou um discurso objetivo e sem rodeios para externar os desafios de sua agenda para os próximos quatro anos.

Em contraste com a economia de palavras, a equipe de 14 mulheres e dez homens com idade média de 49 anos é em si eloquente. “Uma mudança de rumos, uma mudança geracional e uma mudança de comportamento”, afirma Pablo Reimers, dirigente do Partido Comunista do Chile, que participa da frente consagrada nas urnas. O ministério contempla nove agremiações, cinco delas integrantes da coligação Apruebo Dignidad, quatro convidadas após a vitória, além de um grupo de oito ministros sem filiação partidária. Alguns símbolos saltam aos olhos.

A veterinária Maya Fernández ­Allende, ex-presidente da Câmara dos Deputados, é a nova ministra da Defesa. Apesar das críticas por não mencionar Salvador Allende em seu discurso de vitória, Boric não titubeou em indicar a neta do ex-presidente derrubado e assassinado pelos militares em 1973 para comandar as Forças Armadas. Outras nomeações ousadas são as de Marco Antonio Lavanal, para a Educação, e de Alexandra Benado Vergara, para os Esportes. Ambos são homossexuais assumidos e não há até agora campanhas difamatórias ao estilo do kit gay do Brasil.

O novo chefe do Executivo trouxe, além desses, seis contemporâneos das lutas estudantis de uma década atrás, com destaque para sua principal adversária nas eleições da Federação dos Estudantes da Universidade do Chile. Trata-se da geógrafa e ex-deputada comunista Camila Vallejo. Ela comandará a Secretaria de Governo.

Boric mostra-se hábil ao buscar evitar conflitos e construir consensos, afirma o ex-chanceler Juán Gabriel Valdez. Seu ministro da Fazenda é nada menos que ­Mario Marcel Cullell, presidente do Banco Central no governo de Sebástian Piñera, notadamente neoliberal. Trata-se de claro aceno ao mercado por parte de um governo que prometeu em campanha renacionalizar riquezas naturais, o cobre e o lítio, e garantir tranquilidade para a aprovação da nova Constituição, em plebiscito que deve acontecer ainda neste semestre.

A neta de Allende será a ministra da Defesa. O banqueiro de Piñera comandará a Fazenda

Vencedor de uma disputa acirrada com o postulante de extrema-direita José António Kast, Boric sabe que está longe de ser unanimidade nacional. A campanha do medo à baderna disseminada por seu adversário, que o acusava de promover quebra-quebras nas ruas, teve apelo em parcela significativa da população. Daí a moderação na linguagem, a incorporação do Partido Socialista da ex-presidente Michele Bachelet ao governo, as mesuras ao mundo das finanças e a declaração à BBC, no dia do anúncio ministerial: “Não espero que as elites concordem comigo, mas espero que parem de ter medo de nós”. A frase que leva setores da esquerda a torcerem o nariz tornou-se num mantra do novo mandatário para ampliar a sua base de apoio.

As principais facções da direita chilena parecem não ter um plano imediato e aguardam para decidir como se comportarão na oposição. O jornal El Mercúrio, uma das vértebras do golpe de Augusto ­Pinochet, tem realizado coberturas informativas e equilibradas e, até aqui, não criticou as opções do novo governo. O mesmo acontece com os setores extremados que apoiaram Kast. Isso se dá porque, tudo indica, o palco de enfrentamentos nos próximos meses se dará no Congresso. Boric não tem maioria segura no Legislativo. A esquerda conquistou 74 vagas e a direita 68, num total de 155 cadeiras na Câmara. O fiel da balança está nas mãos dos independentes (sete eleitos) e do conservador Partido de la Gente (seis). No Senado, há inédito empate, num universo de 50 votos.

A Constituinte é outra frente de disputas. A elaboração da primeira Carta Magna realizada com amplo debate público em toda a história do Chile envolve um pesado jogo de negociações. Embora tenha apenas um terço da Assembleia, a direita tenta dividir os setores progressistas em cada votação, e por vezes consegue, dada a variedade de pautas e temas em controvérsia. Caso acumule derrotas significativas aqui, o conservadorismo tentará minar o plebiscito que sacramentará o novo texto, previsto para os próximos meses, tão logo as votações sejam concluídas. Caso isso ocorra, a consulta popular pode se inviabilizar e o processo iniciado ainda nas ruas, em 2019, será anulado. Não é provável, mas possível. Voltaria a vigorar a Carta emanada dos porões do pinochetismo, em 1980.

Apesar disso, a vida não está fácil para tais setores. A direita chilena enfrenta uma sucessão de crises e divisões internas. Pulverizada em quatro candidaturas nas eleições presidenciais de 2019, amargou, além da derrota de Kast, o fiasco de Sebastián Sichel, candidato do governo Piñera, que acabou em quarto lugar, com 12,8%, logo atrás do aventureiro Franco Parisi, terceiro colocado, que fez campanha pelas redes sociais a partir dos Estados Unidos, onde mora. O tradicional Partido Democrata Cristão, pilar da Concertação, coligação que governou o país entre 1990 e 2010, amealhou apenas 11,6% dos votos e um frustrante quinto lugar. Apesar da divisão e dos maus resultados, a soma dos votos conservadores no primeiro turno alcançou 70% do total. Ou seja, a crise da direita é eminentemente política, apesar de sua vasta base eleitoral.

O Chile é o terceiro país mais vacinado do mundo, com 88% da população completamente imunizada. Há, no entanto, uma alta inédita de infecções que pode abalar um desempenho econômico positivo. Apesar da queda de 5,8 % no PIB de 2020, o país pode ter crescido quase 12% no ano passado (os números oficiais ainda não estão disponíveis) e deve alcançar mais 3,5% em 2022, segundo projeções do Banco Mundial.

A posse do novo governo acontecerá em 11 de março. Mais do que nunca, vale a máxima imortal de Didi, nosso bicampeão das Copas de 1958 e 1962: “Treino é treino, jogo é jogo”. Até aqui, o novo presidente não colheu atritos sérios. Em pouco mais de um mês, a bola entra em campo e a batalha começa para valer. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Boric testa a área “

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo