

Opinião
A economia do mal-estar
Os inimigos recorrem a abstrações para justificar o abandono do povo


A boa alma da Folha de S.Paulo informa: “População de moradores de rua cresce 31% em São Paulo na pandemia. Segundo o censo, a quantidade de famílias sem-teto quase dobrou em relação a 2019.”
Essa notícia poderia ser adicionada ao repertório de desgraças que afligem quase 50% dos brasileiros abrigados nas classes D e E. Os cidadãos dessas camadas sociais não vivem, sobrevivem.
Diante de tais infortúnios, os Senhores da Terra e seus conselheiros econômicos se esbatem na defesa do teto de gastos e de outras aberrações que impregnam as crenças da economia vulgar ao longo de mais de dois séculos.
Os sábios nativos da Crematística têm predecessores respeitáveis. Em L’Economie Politique et La Justice, Walras defende a justiça dos mercados: “Na presença das lamentações da sociedade, o economista deve manter-se calmo, calar suas emoções em benefício do sucesso de seus estudos. Enfim, abandonar o campo da realidade impressionante para se elevar ao domínio da fria abstração que é também o (espaço) da ciência”. Walras disse a seu pai que era preciso libertar a economia dos enganos da história. História, leia-se, a vida concreta de mulheres e homens.
O descompasso entre as desgraças da vida de mulheres e homens e as frias abstrações dos economistas levou minhas lembranças para além dos gelados territórios da Ciência Triste.
A memória me teletransportou para os idos de 1969, momento em que reinavam as tropelias da repressão e da tortura. Restavam, no entanto, as resistências e persistências das artes e dos artistas nos palcos que adornavam os teatros da Paulicéia Desvairada. Em uma noite de agosto de 1969, o Theatro São Pedro acolhia a peça de Henrick Ibsen, Um Inimigo do Povo. Juntei meus tostões e, na companhia de minha mulher Ana, assisti ao desempenho magnífico de Beatriz Segall, Cláudio Corrêa e Castro, Sadi Cabral e Graça Mello, entre outros.
Diante do infortúnio alheio, os Senhores da Terra e seus conselheiros econômicos se agarram ao teto de gastos
Um Inimigo do Povo narra as agruras do Dr. Stockmann. A ação passa-se numa pequena cidade na costa meridional da Noruega. O doutor incorreu na desdita de descobrir que os novos banhos da pequena cidade estavam contaminados por uma doença mortal e instrui a cidade a reparar ou fechar os banhos. O prefeito, que é irmão do Dr. Stockmann, não acredita no relatório e se recusou a fechar os banhos, porque isso iria causar a ruína financeira da cidade.
Stockmann tenta levar seu caso para o povo, mas o prefeito intercede e explica às pessoas quanto custará para reparar os banhos. Ele explica que o doutor está sempre cheio de ideias selvagens e fantasiosas. Em uma reunião pública, ele tem seu irmão declarado inimigo do povo. O médico decide deixar a cidade, mas no último minuto chega à conclusão de que deve ficar e lutar pelas coisas em que ele acredita estar certo a respeito.
Stockmann acha que fez uma grande descoberta. Afirma que seus magníficos, adoráveis e elogiados banhos não passam de um buraco venenoso e pestífero. Ele explica que os canos são muito baixos e toda a sujeira está infectando a água. Passou todo o inverno investigando o caso e enviou amostras da água para a universidade para análise.
Um amigo sugeriu que a peça de Ibsen antecipa as reações de grupos sociais empenhados em negar os riscos da pandemia que ora assola a vida do planeta. Entendi, no entanto, que Um Inimigo do Povo também cuida dos entrechoques entre a preservação da vida decente dos homens e mulheres mergulhados na pobreza e os poderes do dinheiro, aqui vocalizados pelos profetas do Apocalipse Fiscal.
O verdadeiro grande mal é a pobreza, viu Ibsen – Imagem: Borre Hostland/Galeria Nacional de Oslo
Na peça de Ibsen inspirou-me o diálogo entre o Dr. Stockmann o e jornalista Hovstad, do diário A Voz do Povo.
Hovstad – Queira desculpar-me, doutor, mas pretendo fazer uma grande cobertura desse assunto.
Dr. Stockmann – No seu jornal?
Hovstad – Sim. Quando tomei a direção da Voz do Povo foi com a ideia de acabar com essa camarilha de velhos aproveitadores que dominam o poder!
Dr. Stockmann – É verdade, mas o senhor mesmo me disse onde isso o levou. O jornal quase faliu.
Hovstad – Tivemos que nos calar e transigir, não há dúvida. Sem esses senhores seria impossível fazer a Estação Balneária. Mas hoje ela se acha em franco progresso, não dependemos mais desses ricos e poderosos cavalheiros.
Dr. Stockmann – Certo, não dependemos mais deles. Mas isso não quer dizer que não sejamos gratos a eles.
Hovstad – Vamos expressar a nossa gratidão com todas as honras que lhes são devidas. Mas um jornalista com tendências democráticas, como eu, não pode deixar escapar esta grande oportunidade. É preciso acabar com a velha lenda da infalibilidade dos homens que nos dirigem. Como qualquer outra superstição, esta deve ser destruída.
Dr. Stockmann – Neste ponto estou de acordo com o senhor.
Hovstad – Eu gostaria de poupar o prefeito, por ser ele seu irmão. Mas o senhor há de convir que a verdade deve vir antes de tudo…
Dr. Stockmann – Claro. No entanto…
Entre a preservação da vida decente daqueles mergulhados na pobreza e o poder do dinheiro elevam-se as vozes dos profetas do Apocalipse Fiscal
Hovstad – Não quero que me julgue mal. Não sou nem mais egoísta nem mais ambicioso do que a maioria das pessoas.
Dr. Stockmann – Mas, caro amigo, quem diz o contrário?
Hovstad – Sou de origem humilde, como o senhor sabe. Isso me permitiu compreender claramente que as camadas populares, as chamadas classes inferiores, devem participar do governo, dirigindo, elas também, os negócios públicos. Nada melhor que isso para desenvolver o sentimento de cidadania e da própria dignidade…
Dr. Stockmann – Evidentemente…
Hovstad – E parece-me que um jornalista não poderia deixar escapar uma oportunidade como esta para trabalhar pela emancipação da massa dos humildes, dos oprimidos. Sei perfeitamente que os poderosos dirão que isso é uma insurreição ou coisa que o valha. Mas, digam o que quiserem, não importa! Tenho a consciência tranquila!
Dr. Stockmann – Perfeito, perfeito, meu caro Sr. Hovstad.
No Terceiro Ato, a valentia do jornalista é aplacada pelas ameaças do prefeito, irmão do Dr. Stockmann. O dono da Impressora, Aslaksen, entra na discussão.
Prefeito – Sr. Hovstad, o senhor é capaz de ficar ao lado dos agitadores?
Hovstad – Não, Sr. Prefeito.
Aslaksen – Não, o Sr. Hovstad não é tão louco para arruinar-se e arruinar o seu próprio jornal só por causa de uma fantasia…
Dr. Stockmann (assombrado) – O que você quer dizer com isso?
Hovstad – O senhor apresentou a questão de maneira falsa, doutor, e nestas condições eu não posso defendê-lo.
Dr. Stockmann – É tudo mentira, intriga! Deixem-me falar. Só quero que publiquem meu artigo e eu vou mostrar como se defende uma ideia quando se tem a convicção de que se está certo.
Há quem veja semelhança entre as situações da pandemia e da peça – Imagem: Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real
Hovstad – Impossível. Não o publicarei. Não posso, não quero… e não me atrevo a publicá-lo.
Dr. Stockmann – Não se atreve? Que conversa é essa? Não é o senhor o diretor? Não é o senhor que manda no jornal?
Aslaksen – Não, senhor doutor, são os assinantes.
Prefeito – Felizmente.
Aslaksen – É a opinião pública, doutor. As pessoas esclarecidas, os proprietários de casas, a classe média e os demais proprietários, são eles que dirigem os jornais.
Dr. Stockmann (perplexo) – E todos estão contra mim?
Quarto Ato:
Dr. Stockmann (gritando e arrebatado por suas ideias) – E é esta mesma Voz do Povo que proclama que a massa tem direito às melhores condições de vida! Mas, com todos os diabos, se a tese da Voz do Povo fosse posta em prática segundo sua orientação editorial, o povo estaria mergulhado no vício e na corrupção! Pois ela prega a ignorância, prega a velha mentira que herdamos de nossos pais de que é a cultura, as ideias novas que fazem mal para a sociedade. O verdadeiro grande mal é a pobreza, são as miseráveis condições de vida que esmagam muitas pessoas. Em última análise, os poderosos, os mesquinhos, os interesseiros, cultivam a ignorância para se manterem no poder e obter lucros e vantagens! •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A economia do mal-estar”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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