Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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O SUS no escuro

O apagão de dados da saúde sustenta a condução criminosa da pandemia e escamoteia a responsabilidade do Ministério da Saúde

O SUS no escuro
O SUS no escuro
Emenda Constitucional prejudica acesso à saúde. Foto: Michael Dantas/AFP
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Desprevenidos, milhões de brasileiros reuniram-se no fim do ano sem saber que o ­tsunami Ômicron havia invadido o País, pois o alarme do Ministério da Saúde, simplesmente, não tocou.

Desde 10 de dezembro, o sistema nacional de informação que recebe os dados relacionados à Covid-19 parou, devido a um suposto ataque hacker. O País vive o maior apagão de dados da história do SUS.

Gestores e estabelecimentos de saúde, navegando no escuro, mantiveram as rotinas de atendimento e só tiveram a real dimensão do problema quando as UBS e emergências já estavam lotadas, após o ano-novo. Todas as ações prévias necessárias para o enfrentamento da nova onda – expansão de leitos, contratação de profissionais e compra de insumos extras – foram prejudicadas pela falta de dados.

A parada geral nos sistemas de monitoramento da Covid-19 é não só outra demonstração de amadorismo, mas o episódio mais grave de uma sequência de erros na gestão das tecnologias da informação do Ministério da Saúde nos últimos anos.

Em 2018, a Folha de S.Paulo descobriu que os exames realizados em hospitais e os medicamentos dispensados em farmácias públicas poderiam ser acessados por qualquer pessoa no aplicativo e-Saúde. Em 2019, informações de 2,4 milhões de usuários do SUS foram expostas em um ­site da web, obtidas a partir de uma falha no Sistema de Cadastro dos Usuários do SUS.

Em 2020, senhas de acesso do sistema de notificação de Covid-19 ficaram expostas na internet. Neste mesmo ano, o Estado de S. Paulo descobriu que dados pessoais de mais de 200 milhões de brasileiros, incluindo CPF, endereço e telefone, além de informações confidenciais como doenças preexistentes, estavam disponíveis na internet.

A anarquia tecnológica chegou a tal ponto que os próprios hackers, um ano antes do início do atual apagão de dados, deixaram a seguinte mensagem após uma invasão ao site do Ministério da Saúde: “Qualquer criança consegue invadir este excremento digital, causar lentidão e até estragos maiores”. Dito e feito.

Aos problemas da falta de segurança no acesso aos sistemas somou-se uma falha grave, inexplicável para um modelo tão crítico como esse: a ausência de “redundância”, ou seja, de uma opção reserva que entrasse no ar em caso de falência no principal. Tal como um gerador diante de uma queda de energia.

Pego de calça curta, o secretário-executivo do Ministério da Saúde admitiu, depois de mais de um mês do problema, que a arquitetura com a qual os sistemas da Covid-19 foram construídos não permitiu a criação de soluções contingenciais: “Não é como um software que você apaga e reinstala, quando esse software é destruído, a gente precisa reconstruir o sistema”.

A primeira medida para resolver o caos deve ser a absoluta transparência quanto aos problemas ocorridos e às ações realizadas, tanto para resolvê-los quanto para prevenir novas crises. É uma postura oposta à prática do governo Bolsonaro, que vem impondo sigilo a processos que deveriam ser públicos, violando sistematicamente a Lei de Acesso à Informação.

Em segundo lugar, os melhores quadros profissionais de Tecnologia da Informação do governo federal, seja da Dataprev, seja do Serpro, da Fiocruz, ou mesmo das universidades, deveriam ser convocados para se agregar ao Datasus e resolver o impasse. Infelizmente, tudo indica que o Ministério da Saúde, caminhando no sentido contrário, entrou numa espécie de operação padrão, tratando o apagão como um incidente qualquer dentro de sua rotina. O secretário-executivo chegou, inclusive, a negar o apagão de dados.

Por fim, é necessário reverter o desmonte neoliberal que vem sendo imposto à área de Tecnologia da Informação do Ministério da Saúde. A pasta executou pagamentos da ordem de 168 bilhões de reais em 2021. O montante gasto com TI equivaleu, porém, a menos de 0,3% do orçamento do órgão.

Esse valor é inaceitável para qualquer órgão público que funcione com o mínimo de eficiência e não tem precedentes quando comparado ao aplicado pelo setor privado. Segundo a FGV, as empresas vêm investindo, em média, 8,2% de seu faturamento líquido em soluções de TI.

Sem uma resposta urgente, séria e transparente, seguiremos gerindo a pandemia no escuro. Fica cada vez mais evidente que não se trata apenas de um governo medíocre, incompetente e irresponsável. O apagão de dados serve também para sustentar a condução criminosa da pandemia e escamotear a responsabilidade dos negacionistas que estão à frente do Ministério da Saúde no País. •


*Com a colaboração de Giliate Coelho Neto, mestre em Saúde Coletiva pela Unifesp e ex-diretor do Datasus.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O SUS no escuro”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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