Cultura
O eterno retorno de Macbeth
A estreia do filme dirigido por Joel Coen na AppleTV+ chama a atenção para outras três versões da obra clássica


Shakespeare é hoje um autor mais famoso do que lido. Macbeth, uma de suas principais obras, fala de um passado que poucos sabem localizar. Mesmo assim, o filme A Tragédia de Macbeth, que estreou na AppleTV+, deve concorrer a um punhado de Oscar, o que levará um tanto de gente a querer vê-lo.
Se ler suas obras exige bastante esforço, consumir as ideias e a visão que Shakespeare teve dos homens e do poder é mais fácil. Qualquer filme de super-herói ou mesmo de heróis comuns comporta mais influências do autor britânico do que sonha a nossa vã filosofia.
Ambição e ganância são temas que não envelhecem. E a tirania, a crença de que quem tem poder tudo pode, voltou com uma força que até há pouco ninguém imaginaria. A Tragédia de Macbeth embala esses tópicos em um filme que é histórico sem deixar de ser contemporâneo.
Escrito e dirigido por Joel Coen, no primeiro trabalho sem o irmão Ethan, A Tragédia de Macbeth enfatiza a magnitude do texto, mas não ostenta a solenidade característica desse tipo de produção. Embora a poesia shakespeariana ressoe a cada diálogo, nunca parece que estamos vendo atores declamando um texto nobre.
Duas escolhas de Coen são decisivas para alcançar esse efeito. Todas as interpretações são em um tom baixo, o que faz as palavras ganharem corpo e vida na respiração dos atores, e a elaborada composição visual cria um imaginário apropriado para atrair o público de uma época em que as imagens convencem mais que as palavras.
A Tragédia de Macbeth não é apenas deslumbrante do ponto de vista fotográfico, mas seu conceito visual é o principal argumento contra a redundância (ou não) de mais uma versão cinematográfica de Macbeth.
As peças de Shakespeare superam a Bíblia como inspiração para filmes. O registro mais antigo de uma produção inspirada na Paixão de Cristo é de 1898, ano em que Macbeth também migrou do palco para a tela. Dali em diante, foram dezenas de versões para cinema e tevê.
Em meio a tantas, pelo menos três se tornaram referência, graças aos nomes que as assinam. E a boa notícia é que todas estão disponíveis no streaming. Orson Welles filmou Macbeth – Reinado de Sangue (Pluto TV e YouTube) em 1948. Akira Kurosawa, em 1957, Trono Manchado de Sangue (Belas Artes à La Carte).Roman Polanski realizou Macbeth (HBO Max).
As peças de William Shakespeare superam a Bíblia como inspiração para o cinema e a TV
A adaptação de Coen entra para esse clube de elite. Welles, Kurosawa, Polanski e Coen não vampirizam Shakespeare, como, por exemplo, o australiano Justin Kurzel, Macbeth: Ambição e Guerra (2015).
Como seus nobres antecessores, Coen cria um Macbeth cinematográfico, ou seja, explora as possibilidades dos meios audiovisuais para expandir o alcance do texto. O de Welles foi um ato de afastamento de Hollywood, seu primeiro filme “independente”. O diretor reforça a impressão teatral, ao mesmo tempo que radicaliza o uso da luz. O cenário é carregado de formas simbólicas, e todo o elenco atua com o tom enfático de uma encenação teatral.
A impressão geral de teatro filmado é, no entanto, desafiada por ângulos insólitos, que exacerbam as ambiguidades do texto. A posição alta da câmera serve, muitas vezes, para aniquilar a imagem portentosa do rei, enquanto Lady Macbeth, logo que pressente a derrota, é mostrada como se fosse uma tirana no apogeu.
O aspecto mais assombroso da versão de Welles é o uso fortemente contrastado da luz, em que a iluminação é posta de modo a escurecer, cegar, em uma transposição do enfeitiçamento de Macbeth. A interlocução de Coen com Welles pode ser percebida, entre outras coisas, na presença de atores negros. Em 1936, Welles havia dirigido uma montagem teatral interpretada exclusivamente por atores negros.
Mas a versão de Cohen, apesar de dialogar diretamente com a de Welles, não perde as escolhas plásticas feitas por Kurosawa e Polanski. O cineasta japonês privilegia o branco, que predomina nos cenários, na figura da feiticeira, nas fantasmagorias, no figurino da esposa sinistra e nas brumas que cercam e cegam o tiranete. A queda dos personagens no caos moral enuncia-se com mais força ainda em meio ao branco que não indica nada de pacífico ou puro.
A fotografia em cores do filme de Polanski parece distanciá-lo das versões em preto e branco. No lugar dos contrastes, ele adota tons terrosos e cinzentos, com ambientes enlameados e pantanosos.
O aspecto mais impactante do filme feito por Polanski em 1971 vem do modo como a violência explode e torna-se uma força unicamente destrutiva. Ela não é um meio de conquistar e manter o poder, mas de aniquilar tudo. Nesse sentido, é impossível dissociar as imagens do ritual macabro no qual sua esposa, Sharon Tate, e amigos foram assassinados em 1969. Macbeth é o primeiro trabalho do diretor após o crime.
A Tragédia de Macbeth retoma o preto e branco, mas não para evocar o expressionismo sombrio de Welles ou a brancura expressionista de Kurosawa. A fotografia do francês Bruno Delbonnel é contida nos contrastes. Tudo ganha tons acinzentados: a pele negra de Denzel Washington, os pelos grisalhos de sua barba, os figurinos e os cenários. No lugar de opor claro e escuro, dia e noite, belo e o feio, o filme de Coen mistura-os, como as feiticeiras. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O eterno retorno de Macbeth”
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