Cultura
Sobe o pano, desce o pano
No momento em que começava a recompor-se, o setor cultural vive nova onda de cancelamentos e adiamentos


O ator e dramaturgo Giordano Castro, um dos fundadores do grupo Magiluth, do Recife, deu início à criação de Estudo nº 1 – Morte e Vida no segundo semestre de 2019. A estreia, marcada para maio de 2020, foi, como tudo então, cancelada. Quase dois anos depois, nova estreia foi marcada, no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Outro adiamento se seguiu. Desta vez, não foi o teatro que fechou. O motivo da suspensão foi a infecção de três dos seis atores por Covid-19. A previsão, agora, é de que o espetáculo entre em cartaz no dia 28.
“É claro que é tensa essa volta. Mas nem cogitamos de cancelar a estreia. A gente não tem mais de onde tirar o sustento para o nosso dia a dia. Sempre vivemos das nossas apresentações”, diz, por telefone, isolado no quarto de sua casa, Castro, que testou positivo para Ômicron. “Em parte desses dois anos, encontramos formas de sobrevivência fazendo projetos virtuais. Mas, a esta altura, o consumo de arte e cultura via virtual está em outro lugar. Há um cansaço da parte do público.”
No início da pandemia, muito se falou que as atividades culturais seriam as primeiras a parar e as últimas a voltar. Antes da vacinação e do aprimoramento dos protocolos de segurança sanitária, a imagem de várias pessoas reunidas em um teatro ou cinema parecia assustadora. Hoje sabemos que, se os protocolos forem seguidos, o risco de contágio não é maior do que em várias outras atividades liberadas antes.
Percebe-se, neste momento, que o setor cultural, que tendeu, de forma geral, a defender as restrições e aderir às possibilidades do virtual, começa a reagir à ideia de que, novamente, é hora de olhar para teatros, casas de shows, cinemas e eventos como espaços incompatíveis com o manejo responsável da pandemia.
“É importante, agora, determinar a territorialidade das artes”, defende Márcio Abreu
“Acho que existe algo importante a fazer agora, que é determinar a territorialidade das artes. Não é porque não pudemos, durante algum tempo, nos manter fisicamente presentes, que essa dimensão das artes pode ser desconsiderada”, pontua Marcio Abreu, criador da Companhia Brasileira de Teatro.
Abreu não cogitou cancelar a estreia de Sem Palavras, marcada para a quinta-feira 20, no Sesc Pompeia, em São Paulo. A peça começou a ser construída uma semana antes da decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde. O projeto, desde então, desmembrou-se em três residências artísticas, na transmissão digital de um ensaio, em uma breve turnê por França e Alemanha e apresentações no Oi Futuro, no Rio, no fim do ano passado. Agora, diz Abreu, é preciso seguir adiante.
Quem manteve as estreias na semana passada, teve boa surpresa. Escola de Mulheres, dirigida por Clara Carvalho, abriu a temporada 2022 do Teatro Aliança Francesa, em São Paulo, como parte das celebrações dos 400 anos de nascimento de Molière. O espaço trabalhou com apenas 50% da taxa de ocupação, para ser possível o distanciamento entre a plateia, e teve todos os ingressos vendidos.
Enquanto nas unidades do Sesc e nos teatros menores a manutenção das agendas vai se mostrando uma opção viável – ainda que com um enorme vaivém de cancelamentos e remanejamentos –, no caso dos grandes shows a situação mostra-se um pouco mais complicada. Não apenas porque a dinâmica do público é outra, mas porque, quanto mais gente há nas equipes, maior o risco de alguém ser contaminado no meio do caminho e colocar o planejamento por água abaixo.
Surto. A banda mineira Jota Quest cancelou metade da agenda de shows este mês. Marisa Monte, após infectar-se com a nova variante, também suspendeu a temporada – Imagem: Redes sociais e Leo Aversa
Este mês, as duas principais bandas mineiras, Skank e Jota Quest, tiveram de cancelar as apresentações por causa de infecções entre os integrantes dos grupos. “É como se você estivesse caído no chão e recebesse um chute na cara”, resume Paulo Roberto Diniz Júnior, o PJ, baixista do Jota Quest, que teve de cancelar um terço da agenda de shows este mês.
“É superfrustrante, mas não tem nenhuma surpresa aí”, diz, entre conformado e desapontado Marcelo Pianetti, empresário de outro artista mineiro, Lô Borges. “A onda da Ômicron, no Brasil, está apenas começando. A maioria dos eventos de grandes artistas foi cancelada em janeiro e creio que isso não vai se normalizar antes de abril.”
Pianetti diz que, no caso dos shows, mesmo aquilo que, teoricamente, é uma alternativa, como fazer apresentações em espaços abertos, foi se mostrando delicado. “Fazer shows em casas noturnas e teatros é temerário por serem lugares fechados, mas, ao mesmo tempo, você consegue distribuir melhor o público. Os chamados eventos open air têm a vantagem de ser feitos em lugares abertos, mas aí é mais difícil controlar a aglomeração. Ou seja, é uma sinuca de bico.”
O velho ditado “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come” estende-se para as condições de subsistência dos trabalhadores do setor. Se uma cantora até pode conseguir alguma remuneração via live, o mesmo não se pode dizer dos milhares de profissionais cuja especialidade é trabalhar no palco. Iluminadores, técnicos de som e contrarregras, por exemplo, passaram um ano e meio sem contratos.
Nesses casos, a possibilidade de volta, com o arrefecimento da pandemia nos últimos meses de 2021, foi, a um só tempo, um alívio e um temor. “Fiz alguns eventos depois da flexibilização e não havia quase ninguém de máscara, só mesmo a gente do stage”, diz o técnico de som Paulo Farat.
A falta de máscaras em um show do sertanejo Gusttavo Lima, apoiador de Bolsonaro, no fim do ano, levou o secretário de Saúde de Florianópolis a dizer que aplicaria uma multa aos organizadores. Lima, logo depois, testou positivo para Covid-19 e acabou sendo obrigado a cancelar outras apresentações.
Marisa Monte foi outra que, na semana passada, adiou as turnês previstas para o Rio e São Paulo após testar positivo. “Estamos avaliando as demais datas (…), dia a dia, na certeza de que faremos a escolha certa em nome da segurança e do bem-estar de todos”, escreveu a cantoras, em suas redes sociais.
Contrarregras e técnicos de luz e som passaram um ano e meio sem qualquer trabalho
Ainda que prevaleça, entre os artistas, o tom dos cuidados com a saúde em primeiro lugar, a defesa de que, dentro do possível, as atividades culturais sejam mantidas tem ganhado força. “Sou a favor enquanto cientificamente seja provado que dá para fazer os eventos, sem alastrar a pandemia”, diz Haroldo Tzirulnik, empresário do rapper Projota.
Marina Campos, empresária da cantora Roberta Campos, é outra que defende que, neste momento, é possível e importante manter as atividades culturais, desde que com precauções e exigências. Ela lembra que, na Europa, os equipamentos culturais têm pedido não só o passaporte da vacina, mas também testes negativos.
“Olhando para todos os segmentos, vemos que é descabido impor novamente restrições a um setor que já foi tão massacrado como o nosso”, diz Doremi Caramoni, da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos. “Tínhamos começado a voltar no segundo semestre do ano passado, mas, obviamente, não tivemos margem para nos recuperar.”
Cabe lembrar que estão previstos para 2022 grandes eventos de música, como o Rock’n’Rio e o Lolapalooza e uma gama enorme de atividades ligadas à efeméride da Semana de 22. Os 100 anos da Semana de Arte Moderna mobilizará dezenas de museus do País, além de orquestras, e está por trás de eventos de variadas linguagens e tamanhos.
Os museus, por ora, têm mantido abertas as exposições, suspendendo somente as atividades educativas e culturais para, nas palavras de Lucas van de Beuque e Angela Mascelani, do Museu do Pontal, no Rio, “não estimular a formação de grupos”. O Museu do Amanhã, também no Rio, adotou medida similar.
Se, em 2020, manter as portas fechadas tinha também um sentido político, hoje parece que esse sentido vai migrando para as portas abertas. “A arte, neste momento, mostra-se essencial para elaborarmos essa dimensão da morte no mundo e, em especial, no Brasil de Bolsonaro”, diz Marcio Abreu. “A gente continuará agindo de forma a preservar a saúde, mas hoje me pergunto: o que é de fato prioridade e quem define o que é prioridade? A dimensão do coletivo tem várias nuances.” •
ENFIM, NAS SALAS DE CINEMA
Depois de adiamentos, Eduardo e Mônica entra em cartaz e, com a Ômicron, encontra circuito mais livre de blockbusters
Entre o fim de 2019 e o início de 2020, a equipe envolvida no lançamento de Eduardo e Mônica debruçou-se sobre o calendário de estreias do ano e decidiu que 12 de junho era uma data muito interessante para o lançamento do longa-metragem baseado na canção de amor de Renato Russo.
Passou o Dia dos Namorados de 2020, passou o Dia dos Namorados de 2021 e não houve condições de levar adiante a estreia. Uma nova data foi então decidida: 6 de janeiro. A presença de Homem-Aranha – Sem Volta para Casa no circuito era, porém, tão avassaladora que a estreia foi mais uma vez remanejada, então para 20 de janeiro. E foi assim que o filme, uma das apostas do cinema brasileiro para 2022, acabou por chegar às salas de exibição com a Ômicron.
Se, de um lado, a data pode implicar certo recuo do público, ela também significa uma oportunidade. Como o principal título norte-americano previsto para esta semana, Morbius, da Sony, foi mais uma vez adiado, justamente por causa da nova variante, Eduardo e Mônica conseguirá mais espaço nas salas. O filme é, nesse sentido, mais uma esperança de recuperação para o cinema brasileiro em 2022, após um 2021 duríssimo.
No ano passado, o circuito, depois de reaberto, foi totalmente dominado pelos blockbusters estrangeiros. De acordo com o Filme B, os títulos brasileiros venderam apenas 1,4% do total de ingressos dos cinemas.
“Não tem mais sentido, com restaurante lotado, praia lotada e shopping lotado, a gente ainda achar que as salas de cinema são um grande foco de transmissão”, diz Bianca de Felippes, produtora de Eduardo e Mônica. “Estamos nas férias, temos feriados em São Paulo e no Rio e acreditamos na força do filme.”
Faroeste Caboclo, o outro filme baseado numa canção de Renato Russo, fez 1,5 milhão de espectadores nos cinemas. Eduardo e Mônica teve pré-estreias lotadas em Brasília e tem mobilizado os fã-clubes da banda Legião Urbana. “Espero que, neste momento, o filme dê um quentinho no coração de quem for assisti-lo”, diz René Sampaio, o diretor.
“Acho que o filme traz uma mensagem de tolerância e respeito ao outro, que, de alguma forma, tem outra dimensão neste momento.”
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sobe o pano, desce o pano”
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