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Mariana e Brumadinho não ensinaram nada a Minas Gerais

E o estado continua sob o risco constante de desastres naturais e rompimento de barragens

Mariana e Brumadinho não ensinaram nada a Minas Gerais
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Entre estatais/ E multinacionais,/ Quantos ais!/ (…) Quantas toneladas exportamos/ De ferro?/ Quantas lágrimas disfarçamos/ Sem berro? A Lira Itabirana, publicada por Carlos Drummond de Andrade em 1984, parece um retrato fiel da situação vivenciada pela população de Minas Gerais atualmente. Lama por todos os lados, cidades inteiras isoladas, moradores em pânico. Apenas na terça-feira 11, as tempestades deixaram um saldo de dez mortes em 24 horas. Desde o início do período chuvoso, foram 34 vidas perdidas em desastres naturais. Cenas que chocaram o mundo, como a queda da pedra em Capitólio, marcaram o ano-novo. Mas destaca-se o terror vivido por centenas de cidades de Minas Gerais ameaçadas pelo risco de rompimento de barragens. Segundo a Agência Nacional de Mineração, ao menos 36 estão em nível 3 de emergência.

O número de acidentes com barragens no estado aumentou 14 vezes, passando de quatro casos em 2018 para 22 em 2020, segundo a Agência Nacional de Águas. A situação de perigo é resultado do extrativismo predatório, viabilizado por uma relação promíscua entre companhias e o Poder Público, a partir da flexibilização de normas de segurança, da omissão de crimes ambientais e da especulação imobiliária.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Mineração, 511 municípios mineiros produzem bens minerais. Em 2021, o estado exportou 22 bilhões de dólares em minerais, 38% das exportações nacionais do setor. Os dados contrastam com a realidade de quem convive com problemas decorrentes das barragens. Somando as duas maiores tragédias, a de Mariana, quando 19 trabalhadores foram engolidos pela lama após rompimento de uma mina da Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, e de Brumadinho, da Vale, que soterrou 270 funcionários e moradores em 2019, ao menos 1,3 milhão de habitantes foram atingidos. No caso de Brumadinho, seis ‘joias’, como os bombeiros e familiares se referem às vítimas, permanecem desaparecidas. Devido às chuvas que inundaram o local, as buscas foram suspensas pelo Corpo de Bombeiros por tempo indeterminado.

Vítimas. Desde o início do ano, 34 mineiros morreram em decorrência das fortes chuvas. As cenas do desabamento no cânion de Capitólio correram o mundo

Enquanto isso, o governador Romeu Zema segura, há três anos, a regulamentação de uma lei que cria um fundo para cada barragem construída, a ser utilizado na assistência imediata às vítimas ou na reparação da infraestrutura local em caso de novos desastres.

Localizada em Congonhas, a barragem Casa da Pedra, da CSN, é cinco vezes maior que a de Brumadinho. Trata-se da maior estrutura localizada em área urbana na América Latina, com 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos. No município com 54 mil habitantes, dois bairros ficam tão próximos da barragem que, se ocorresse um rompimento da estrutura, os moradores seriam atingidos em, no máximo, 30 segundos.

“Vivemos sob terror constante”, conta o padre Antônio Claret, da coordenação estadual do Movimento dos Atingidos por Barragem. De acordo com ele, durante as chuvas desta semana, moradores e especialistas notaram uma espécie de vazamento e encontraram erosões na estrutura. A prefeitura de Congonhas precisou acionar a CSN na Justiça para obter um mandado de segurança, a determinar a liberação do acesso aos fiscais da Defesa Civil, sob pena de multa de 1 milhão de reais por dia.

O número de acidentes em reservatórios de rejeitos cresceu 14 vezes em apenas dois anos

Além do medo de um novo desastre, moradores do entorno convivem com o pó mineral, que gera doenças pulmonares e polui o ambiente. Nem os Doze Profetas de Aleijadinho passam incólumes, observa o padre Claret. “Quando você olha para as montanhas, vê uma nuvem de pó. Somente quando chove é possível enxergar o topo.”

Por meio de nota, a CSN Mineração S/A diz receber “todos os órgãos fiscalizadores”, além de reafirmar que a barragem é “segura e estável”. Quanto à paralisação da barragem em Congonhas, a companhia, pertencente ao Grupo CSN, acrescenta que fará a retomada gradual das atividades conforme as condições climáticas permitirem.

O primeiro acidente de 2022 foi o transbordamento de um dique da mina Pau Branco, da Vallourec, localizada em Nova Lima, que inundou a BR-040. O carro de uma família de cinco pessoas teve de desviar da rodovia bloqueada e acabou soterrado por um deslizamento de terra em Brumadinho. Os corpos do casal e das três crianças foram resgatados pelos Bombeiros após o carro ser arrastado por 400 metros.

O governo de Minas emitiu uma multa de 288 milhões de reais à mineradora por degradação da paisagem, poluição das águas e contaminação ambiental. A empresa tem 20 dias para pagar o valor ou apresentar a sua defesa aos órgãos ambientais. A Vallourec afirmou, em nota, que ainda analisa o teor do auto de infração. Uma obra de expansão do dique foi autorizada pelas autoridades estaduais com “licenciamento expresso” em 2021. Também por meio de nota, o governo mineiro diz ter seguido à risca os “critérios definidos da Deliberação Normativa 217 de 2017”, a elencar procedimentos para estruturas já licenciadas.

Presente de grego. Ao oferecer 47 milhões de reais para Zema amparar as vítimas, Bolsonaro liberou mina com barragens até 90 vezes maiores que a de Brumadinho

Pelo lado do governo federal, que anunciou repasses de 47 milhões de ­reais para auxiliar as vítimas das chuvas, também há controvérsias. Jair Bolsonaro ofereceu a sua “contribuição” para o estado ao mesmo tempo que liberou, depois de dez anos travado no Ibama, o projeto de uma mina da Sul Americana de Metais S/A, com barragens até 90 vezes maiores que a rompida em Brumadinho, informa o site The Intercept Brasil.

Nos últimos anos, o estado tornou-se um verdadeiro campo minado. Após o boom das commodities, que impulsionou o crescimento econômico de países da América Latina no início do século XXI, a corrida mineral foi amplamente intensificada, quase sem controle. “Não houve um governo que não atendeu interesses das mineradoras”, lamenta o ambientalista Gustavo Gazzinelli, integrante do Gabinete de Crise da Sociedade Civil. O grupo defende uma moratória da mineração e critica o fato de as próprias empresas serem responsáveis pelo monitoramento das barragens, podendo sonegar informações por interesses mercadológicos.

As mineradoras sempre foram as principais doadoras para campanhas políticas no estado. Em 2014, último ano em que os repasses empresariais eram permitidos pela legislação eleitoral, 102 ­deputados eleitos para a Assembleia ­Legislativa e para a Câmara Federal receberam um total de 14 milhões de reais.

Atualmente, na Assembleia, tramitam dois projetos de lei criticados por ambientalistas. De autoria de Thiago Cota (MDB), o PL 3.300/21 visa mudar o traçado do Monumental da Serra da Moeda sob o argumento de gerar empregos e desenvolvimento econômico. O texto foi aprovado em três comissões do Legislativo mineiro em 24 horas, e só foi paralisado após intensa pressão popular. O projeto, alertam os críticos, visa apenas liberar a exploração de ferro no topo da montanha pela Gerdau.

Fontes: Climatempo, Defesa Civil de Minas Gerais, Agência Nacional de Mineração, Comando de Policiamento Rodoviário

Por sua vez, o PL 3.209/21, de Virgílio Guimarães (PT), a alterar a política estadual de segurança de barragens também é alvo de críticas. “O objetivo é atender aos interesses do Projeto Apolo, que a Vale tenta emplacar desde 2008 em Minas”, observa Gazzinelli.

Com custo estimado de 4 bilhões de reais, o Projeto Apolo seria implantado entre Santa Bárbara e Caeté, mas esbarra em questões ambientais envolvendo a Serra do Gandarella. O objetivo é produzir 14 toneladas de sinter feed (material fino) por ano com umidade natural, sem uso da água no beneficiamento do ferro. Antigo empreendedor de Serra Pelada, no Pará, Guimarães argumenta no PL: “Essa medida é direcionada para o destravamento das amarras do desenvolvimento de nosso estado”.

A Lei Federal nº 14.006, de 2020, proibiu a construção de barragens pelo método a montante e determinou que as existentes devem ser desativadas até 25 de fevereiro, prazo que pode ser prorrogado em caso de inviabilidade técnica. Pesquisadores da UFMG preparam um projeto para substituir o sistema e mudar a destinação dos rejeitos no Brasil. Batizado de “geopolímero”, o material feito a partir dos resíduos pode virar uma espécie de cimento sustentável. “O projeto está pronto e estamos em fase de viabilização econômica”, diz o engenheiro de minas ­Roberto ­Galery, professor titular do Departamento de ­Engenharia de Minas da UFMG.

Produto semelhante é usado em países como China, Austrália e EUA na construção de edifícios. O professor explica que outro entrave para um caminho sustentável na atividade é o desperdício de minério durante a extração, que pode chegar a 18%. “Estamos estudando formas de evitar essa perda de minérios. Até o momento, conseguimos reduzir para 2%.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: CRISTIANO MACHADO/AGÊNCIA MINAS/GOVMG E GIL LEINARDI/AGÊNCIA MINAS/GOVMG – ERIC MARMOR/ISRAEL DEFENSE FORCES E PEDRO GONTIJO/AGÊNCIA MINAS/GOVMG

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